Andrea Nogueira

01/06/2019 01h12
 
Vadiagem
 
Todo país tem suas próprias leis. No Brasil, o Poder Legislativo trabalha para ordenar a sociedade através de regras norteadoras do comportamento dos seus cidadãos. Assim, vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores (todos escolhidos pelo povo) além de serem vigilantes quanto aos atos dos governantes, trabalham exatamente para construir instrumentos normativos capazes de manter a ordem do país e faze-lo desenvolver cada vez mais.
 
Dentre tantos instrumentos normativos, a Lei n. 3.688 do ano 1941, que ainda é vigente apesar da idade, tem um artigo intrigante tratando de um comportamento nominado VADIAGEM pelo nosso dicionário.
 
A propósito, VADIO, segundo o dicionário, pode ser um adjetivo ou um substantivo. Sendo adjetivo, é designado para aquele que não tem ocupação, empenho ou pouco se esforça para o trabalho, ou que nada faz. Sendo “substantivo, é usado para referir-se a um homem com esses adjetivos”.
 
Curiosamente, VADIA, que deveria ser o feminino de VADIO, na verdade é “um substantivo feminino para nominar mulher que, sem viver da prostituição, leva vida devassa ou amoral”.  Mas afinal, VADIA é um substantivo feminino de qual substantivo masculino, já que VADIO não nomina homem que leva vida devassa ou amoral no mesmo sentido pejorativo atribuído às mulheres? E quem realmente foi privilegiado pelo dicionário?
 
Analisando parte da Lei n. 3.688, chamada Lei de Contravenções Penais - LCP, é possível responder a essas perguntas.
 
É que o artigo 59 da LCP denomina crime o seguinte: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. A pena para o comportamento narrado no artigo 59 é de prisão, podendo variar de quinze dias até três meses.
 
Diante deste pequenino artigo legal importa refletir sobre quem o legislador quis punir; qual o seu objetivo.
 
O artigo define um crime popularmente conhecido como Crime de Vadiagem. Assim, “alguém” naturalmente seria o vadio ou a vadia, mas aí esbarramos no fato de que a mulher nem se encaixa no mesmo conceito gramatical que o homem. Coitados dos homens... parece que a lei foi feita para eles.
 
Cuidadosamente, a lei inspirou punir homens ociosos pobres, ou seja, os desocupados ou preguiçosos pobres. Desse modo, basta ter dinheiro (renda) que estará salvaguardado.
Dessa forma, fica óbvio que nenhum rico consegue cometer o crime de vadiagem. Ele pode se dar ao luxo de entregar-se habitualmente à ociosidade, mesmo sendo válido para o trabalho, pois a lei focou exclusivamente no pobre, punindo-o com pena de prisão, não bastando para ele o fardo da pobreza.
 
A lei é do ano 1941. Naquela época, era socialmente correto e de bom costume que mulheres não trabalhassem. Elas jamais seriam taxadas de ociosas por isso. Aliás, estariam cumprindo o seu papel natural, desde que fossem sustentadas por um homem, claro. Assim, percebemos também que as mulheres que não tinham a “sorte” de serem ricas ou sustentadas financeiramente por um homem, quase seriam enquadradas no crime de vadiagem, mas escaparam por um fio, graças ao fato de que mulher vadia, segundo nossa perfumada sociedade sempre foi completamente diferente de homem vadio.
 
E agora, quem realmente foi privilegiado pelo dicionário?

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