Ana Carolina Monte Procópio

19/08/2019 00h08
 
DE ILHAS E DE CAVERNAS
 
É preciso sair da ilha 
para ver a ilha, 
que não nos vemos 
se não saímos de nós.
 
O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA – José Saramago
 
“Um Homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco.”  
 
É dessa forma que tem início O Conto da Ilha Desconhecida. Essa frase curta e determinada lembra a inocência e firmeza de outro personagem, o Pequeno Príncipe, que, ao encontrar-se com o piloto no deserto, diz-lhe simplesmente: Desenha-me um carneiro! Em ambas as narrativas transparece a força da vontade e da convicção. 
 
Esse pequeno livro de Saramago constitui-se em uma parábola-metáfora da busca do ser por si mesmo, da coragem de ousar, de lançar-se ao mar – que representa o incerto, o inesperado – em busca de uma ilha desconhecida. Quando consegue o homem (os personagens na obra não têm nomes, são apenas referenciados pelas posições que ocupam, exceto o postulante, que é chamado simplesmente de homem) falar com o rei, ele declara o seu intento de encontrar uma ilha desconhecida, ao que o monarca responde que todas as ilhas já são conhecidas e que os geógrafos já as indicaram todas nos mapas. Num diálogo curioso e existencial, o peticionante replica: “Nos mapas só estão as ilhas conhecidas”. O rei insiste em questionar: “E que ilha desconhecida é essa que queres ir à procura?”. E o homem, por fim, conclui: “Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida”.   
 
Essa certeza tão profunda convenceu o rei, que lhe cedeu um barco para que ele fosse em busca de sua ilha desconhecida, porém, certa de existir. O homem não encontrou marinheiros que lhe quisessem acompanhar; apenas a mulher da limpeza do palácio, que lhe abriu a porta para falar com o rei, quis ir junto na viagem. E assim, dois seres que nada entendiam do mar se puseram a navegar. 
 
Essa viagem nada mais é que a jornada de autodescobrimento, do encontro de cada um com seu próprio ser, que é a representação metafórica da ilha desconhecida. Diz o homem já em curso no barco em companhia da mulher da limpeza: “Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver”. Pois, segundo o navegante, “todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcamos nelas”. Sim, somos todos nós ilhas desconhecidas que precisam ser desbravadas. Essa é a grande aventura da viagem em busca da Consciência, sem a qual a ilha que é cada um permanecerá para sempre desconhecida. 
 
Nesse conto tão metafórico, Saramago, em um certo sentido, repete e reforça a fala do seu conterrâneo, o grande Fernando Pessoa, que lançou mão tantas vezes dessa mesma metáfora: de chamar, impulsionar para o mar; que coloca o mar como destino e encontro, ponto de partida – geográfico – e de chegada – existencial. Essa é uma história sobre viagem, a viagem de cada um em busca do autoconhecimento, da consciência de si, do que lhe dá sentido e que, por tal razão, é partida e chegada.  
 
Os versos do poeta Pessoa se encaixam perfeitamente no espírito do conto de Saramago: “É o tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.” 
 
Falando de outra estória, no livro A República, o grego Platão escreveu uma das mais célebres páginas da filosofia ocidental, a Alegoria da Caverna. Trata-se também de uma obra muito metafórica, escrita aproximadamente há 2.400 anos, que conta que homens vivem acorrentados no fundo de uma caverna, com a face voltada para o interior, de forma tal que não conseguem enxergar sua entrada. Há um fogo acesso no interior da caverna, que produz sombras do que acontece lá fora e essas sombras são projetadas nas paredes internas da gruta, para a qual eles estão forçosamente virados. Assim, as sombras são tudo o que eles conhecem e que, portanto, identificam como real. 
 
Ocorre de um deles conseguir libertar-se das correntes e sair da caverna. Inicialmente ofuscado com tanta claridade, ele sente dor e pensa em voltar, acreditando que as sombras que via eram a realidade e os objetos e seres ofuscantes que vê agora são projeções de sua mente, ilusão. Com o passar do tempo, quando seu olhar se acostuma com a luz, quando ele enfim pode contemplar o sol, ele se dá conta de que aquilo é a realidade, e não as sombras que os sentidos, de forma limitada, captavam na caverna. Entusiasmado com o entendimento da Verdade, o ser liberto e agora transformado pela luz retorna à caverna e conta tudo o que viu e entendeu para os seus pares, no desejo de levar pra eles a verdade, fruto de uma consciência ampliada do mundo. Não é bem recebido. No texto filosófico, chega-se a imaginar que ele teria mesmo sido morto pelos ex-companheiros de correntes. Interpreta-se tal trecho como uma alusão ao processo a que foi submetido Sócrates – de quem Platão foi discípulo – e que foi condenado, num processo injusto, a morrer por ingestão de cicuta, um veneno. Platão traz a memória do julgamento tendencioso do seu mestre e sua condenação por ter trazido a “luz” para seus contemporâneos. Sócrates foi acusado de “corromper a juventude” e os escritos relativos ao seu julgamento constituem texto fundamental, a meu ver, tanto para os estudiosos do direito e da filosofia quanto para todos que procurem sinceramente compreender os movimentos humanos diante de uma concepção mais aprofundada da realidade.   
 
Nessas duas obras curtas, há muitos significados comuns. Tanto os marinheiros quanto os outros prisioneiros da caverna julgaram desequilibrados os que se aventuraram a sair desse ponto de vista e buscaram algo mais – o desconhecido, a luz exterior. Os processos são dolorosos, causam incômodo – pra sair da própria ilha é preciso experimentar o desconforto, o incerto – crescer dói. Sair da zona conhecida pra encarar o novo é arriscado e causa sofrimento, mas traz ensinamentos e descortina um novo horizonte.
 
Navegar em busca da própria ilha e sair da caverna são atos que nada mais representam além da busca pela Verdade e pelo Conhecimento. Essa a mensagem, de forma muito simplificada, é certo, das duas estórias, desses dois apelos pela tomada de Consciência.  
 
Qual será a centelha de luz que poderá iluminar o interior de nossa escuridão? Será, certamente, a que nós permitirmos que entre, e, especialmente a que nós buscarmos deliberadamente. 
 
Vale lembrar, por oportunas, as sábias palavras do filósofo Soren Kierkegaard:  
 
“Arriscar-se é perder o equilíbrio por um tempo, 
mas não arriscar-se é perder a si mesmo para sempre.”
 

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