Cefas Carvalho

21/08/2019 00h22
 
Carioca nascido em 1974, Alexandre Guarnieri é historiador da arte, mas é como poeta que vem ganhando espaço e leitores. Integrante do corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens, é autor de "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, 2011), C"orpo de Festim" (livro ganhador do Prêmio Jabuti, em 2015, com 2a Edição pela Penalux), "Gravidade Zero" (Penalux, 2016) e agora teve seu livro mais recente, "O sal do Levitã" (Penalux, 2018) selecionado como semifinalista do prestigiado prêmio lusófono Oceanos. Confira entrevista com o poeta sobre o livro, poesia em geral, processo criativo e cenário cultural:
 
"O sal de Leviatã" mergulha no universo marítimo, incluindo a parte mitológica que cerca o mar. Por que este conceito e qual a relação de sua obra/vida com o mar?
 
De alguma forma o tema do mar se impôs sem que eu me desse conta plenamente, como costuma acontecer comigo. O imponderável é sempre (e plenamente) acolhido no meu processo de criação. Ele é celebrado. O poema que abre o livro começou a ser escrito nos anos 90. Assim como o mar pode representar as forças do nosso inconsciente, nossas memórias e experiências, esse imaginário marinho me persegue faz tempo. Em nosso corpo corre água salgada, nosso sangue é salgado, tem quase o gosto ferruginoso de barcos afundados. Viemos do mar em nossa longa jornada evolutiva. Somos o hiper-mar, como afirmam alguns cientistas neo-darwinistas, ou seja, somos feitos de água em quase 50%, logo, somos a água que saiu da água. Nosso corpo é o mero envoltório destas frações que nasceram do mar original. Os escafandristas, que se vestem como os astronautas, precisam de oxigênio e regulagem térmica em ambiente hostil. Daí as ligações do tema, tanto com o "corpo de festim" quanto com o "gravidade zero" (meus livros anteriores a este, além do "casa das máquinas", minha estreia em livro). Há também o tema da viagem marítima, da navegação, que se relaciona ao tema da viagem espacial, de desbravadores e descobrimentos, mesmo o descobrimento de nós mesmos, sobretudo aquilo que costumamos esconder nas nossas próprias fossas abissais e nem sempre gostaríamos de descobrir. Nossos segredos são como aqueles peixes que brilham no escuro e parecem monstros de outro mundo. A vastidão do mar pode representar forças que fogem ao nosso controle. Metaforicamente, o ambiente submarino proporciona o mergulho na própria Linguagem, na matéria do Poema, ao mesmo tempo fluida e densa. Minha relação com o mar sempre foi de contemplação. Sendo carioca, o mar sempre esteve logo ali. Na única vez que cruzei o Oceano Atlântico para conhecer a parcela italiana do Velho Mundo, a certa altura do voo o piloto anunciou que estávamos sobrevoando a fossa de Romanche, o ponto mais profundo do Atlântico, com abismos de mais de 7 km (a palavra designa também uma língua, parece que foi um dialeto italiano, parente do romeno e do sardo), informação que imediatamente ativou essa eletricidade, essa inquietude, o espanto, que dá início aos meus poemas. Tenho a sensação que a estrutura do livro começou a nascer ali, no avião, quando comecei a rabiscar o que se tornaria o poema Romanche, e não por acaso ele abre a segunda parte do livro.
 
As poesias do livro tem uma estrutura diferente da poesia convencional. Isso foi planejado? O tema "pediu" esta forma poética?
 
Isso aconteceu com cada livro meu até aqui. Tento escutar o que a voz do livro tem pra dizer antes mesmo de estar muito organizado na minha cabeça. Essa organização vai nascendo destes sussurros, que são nada além dos poemas conversando entre si. Quase sempre eles clamam por companheiros, ou seja, eles me conduzem ao esconderijo dos poemas que ainda serão escritos para que o livro encontre a sua forma final, ligada a uma espécie de narrativa. Meu trabalho é o de capturar essas vozes, seguir suas trilhas, seus ecos resvalando na escrita sobre o papel. O fio condutor é a partitura do coro dos poemas apontando o sentido (direção e significado), o conjunto então funda o tema, e vice-versa. Então, sim. O tema pede a forma, mas a forma reforça o tema, numa contínua retroalimentação até que venha a decisão "está pronto!".
 
Como funciona seu processo criativo? Acredita mais em inspiração ou transpiração?
 
Acredito nas duas forças. A inspiração é a parte irracional e incontrolável do processo. É a chave que conecta o relâmpago ao corpo do monstro de Frankenstein. É o clarão em si. É quando estamos abertos para ouvir o sussurro da Musa. A transpiração vem em seguida, é a mente do Doutor Victor sonhando com a possibilidade de vencer a Morte e decidindo o que fazer e como fazer a sua máquina viva. Por isso mesmo creio que a transpiração também pode, com o tempo e a familiaridade com os mecanismos da Poesia, provocar novos clarões, como se o poeta pudesse recriar pequenas singularidades em laboratório, usando o quantum da linguagem. Minha visão da criação poética (e falo aqui do meu processo) é holística nesse sentido. Não acredito que exista só uma coisa ou outra, mas uma rede de energias que funda determinados vetores. Esses vetores são os poemas em si.
 
O que difere o novo livro dos anteriores, em especial o premiado " Corpo de Festim"?
 
Não sei ao certo se saberia explicar mas vou tentar usar uma imagem. Sinto no "corpo de festim" algo de esvaziamento, um movimento de expiração, de um último suspiro possível. Como se o animal a ser empalhado fôssemos nós, ou melhor, nosso corpo físico, pleno de materialidade, sendo subtraído de todo o conteúdo, aqui meramente matérico e orgânico, a alma já ida há tempos. Já no "sal do leviatã" sinto outro movimento, de inspiração, de preenchimento, esse corpo antes esvaziado e transformado em objeto inanimado agora vai receber uma nova água da vida, só que algo acontece no processo (ou pelo menos num processo idealizado) e essa água não tem exatamente o sabor que esperaríamos que ela tivesse. Ela pode ser amarga, salgada demais, intragável até. Mas sem ela, mesmo não sendo a ideal, não passaríamos de coisas secas, esvaziadas, meros objetos. Enquanto no "corpo de festim" usei o corpo para falar das coisas, no "sal do leviatã" usei o mar para falar da alma. Talvez sejam livros complementares.  
 
O livro é dividido em duas partes, bastante distintas, Maré Alta e Mare Nostrum. Qual a ideia dessa divisão e quais as particularidades de cada parte?
 
A primeira parte diz respeito à contemplação das paisagens marinhas. O mar enquanto objeto de análise e observação. O mar está lá fora. Mas quando a maré sobe, ele se aproxima e podemos vê-lo (imagine-se sentado num rochedo) um pouco mais de perto. Por isso chamei de Maré Alta. É o mar que se oferece aos sentidos como uma força exterior. A segunda parte diz respeito ao mar de dentro, nossa profundeza interior, nossas inundações e os monstros que habitam nosso lado escuro. Note que o ovo choca bem no fim da primeira parte e há aí uma provocação. Algo sai do ovo sem que saibamos ainda o que é ou o que pode vir a ser. Já a segunda parte é habitada por todo o tipo de monstro aquático, há referências a Moby Dick, ao Jonas bíblico, ao Lago Ness, ao Kraken e às 20.000 léguas submarinas, ao panteão marinho da mitologia greco-romana, até Godzilla. É uma investigação dos nossos medos e desejos personificados nessas figuras ao mesmo tempo temidas e misteriosas. Sempre tive fascínio por monstros e mitologias.
 
 "O sal de Leviatã" está entre os semifinalistas do conceituado prêmio lusófono Oceanos. Qual a importância desta distinção e qual a sua opinião sobre prêmios literários?
 
Pra mim é realmente uma honra e uma alegria estar entre os semifinalistas! Trata-se de um prêmio importantíssimo, uma vez que envolve todos os países de Língua Portuguesa. Os prêmios, além de revelarem nomes para o grande público, são um grande estímulo para os autores premiados, reforçando suas escolhas estéticas e o investimento pessoal em suas escritas. Os prêmios dizem respeito a seres humanos reconhecendo seres humanos.  Mas àquilo que chamamos Humanidade, cabe a cada um interpretar, não é mesmo? Entendo, sobretudo neste momento difícil que atravessamos (entre polarizações maniqueístas e intolerância), que torcer pelos companheiros, além de fortalecer os nossos vínculos com aqueles que admiramos, pode dizer algo a respeito da nossa própria ideia daquilo que nos torna humanos. Estou muito feliz de figurar entre nomes já consagrados e parabenizo a todos, esperando também que minha escrita possa alcançar cada vez mais leitores. Aproveito para agradecer a todos os jurados que me leram, tanto no Jabuti quanto nessa fase do Oceanos, e viram no meu trabalho algo digno de ser notado e celebrado enquanto contribuição à poesia em Língua Portuguesa.  
 
Como vê a atual produção poética no país?
 
Uma produção vasta que lança tentáculos para todos lados, promovendo, em diferentes graus, um diálogo entre linguagens. A poesia falada nunca esteve tão em alta, com slams e saraus invadindo muitas cidades, das áreas nobres às periferias, e muitas vezes integrando as duas. Muita gente jovem se encantando com a produção escrita, mesmo que essas descobertas nem sempre cheguem através da escola e venham por vias alternativas. A gente pode criticar o sistema educacional mas eu não ouso criticar os professores, já tão desestimulados e desrespeitados. Vejo espaço para todo o tipo de produção e todo o tipo de público. Tem muita coisa disponível, basta correr atrás.
 
"O sal de Leviatã" foi publicado por uma editora de pequeno/médio porte, a Penalux. Como observa hoje o papel destas editoras no mercado editorial?
 
Não é com pouco trabalho que estas editoras tem desbravado o mercado. Editoras (de verdade) que não cobram dos autores (caso contrário são meras gráficas de grife) viraram raridade por bastante tempo mas tem voltado a aparecer. Imagino o quanto é difícil se manter financeiramente num mercado tão complicado como o brasileiro. Esses oásis oferecem alguma esperança e resguardo para novos e experientes autores (quando digo experientes não falo de mim não, hein rs). Tenho visto autores maravilhosos, com bagagens robustas e passagens por editoras de renome sendo publicados pelas menores. Há certamente o colonialismo cultural nessa equação. Existem editoras brasileiras que publicam exclusivamente autores estrangeiros. Às vezes duvido, se tratando de poesia, se podemos sequer chamar o que temos de mercado. É bastante tímido e esquálido. Eu mesmo já levei porta na cara. Eu só consegui para de pagar as minhas publicações depois do Prêmio Jabuti, quando a Penalux me acolheu, caso contrário ainda estaria contraindo dívidas na esperança de ser lido. E mesmo depois do Jabuti, sei que tenho pouquíssimos (muito embora excelentíssimos rs) leitores. Mas fico muito feliz de ser lido por um seleto grupo de amigos, quase em sua maioria composto por poetas e professores de literatura. Gostaria de citar também a importante iniciativa do jornal RelevO, do guerreiro Daniel Zanella e do qual integro com entusiasmo o conselho editorial. Os periódicos voltados para a Literatura, eletrônicos ou em papel, cumprem um papel também bastante importante na divulgação da poesia nesses tempos de informação pulverizada. Bem como a Mallarmargens, revista eletrônica na qual estou editor desde 2012.
 
No país existem excelentes poetas e livros de poesia premiados e prestigiados, mas as editoras reclamam que poesia "não vende". Como fazer para que os leitores consumam poesia?
 
Boa parte daquilo que poderíamos chamar "soluções de mercado" dependeria também de políticas públicas de incentivo à leitura e à escrita, que praticamente inexistem. Os professores, já tão massacrados com baixos salários e péssimas condições de trabalho, passam por poucas e boas para criar em seus alunos o interesse pela leitura e escrita, mas tenho sempre tido notícias de iniciativas de pequena escala, sempre muito bem sucedidas, levadas a cabo por gente compromissada e que tem amor pela Educação e pela Literatura. Acho que a saída está justamente na multiplicação dessas iniciativas, em escolas e associações, em clubes ou praças, projetos sociais e centros culturais. 
 
Quais os seus próximos projetos literários?
 
Estou bem animado com o convite que recebi da Kotter Editorial para preparar uma antologia da minha poesia até aqui, atravessando os quatro livros que publiquei, mas também recheada de muitos poemas inéditos e esparsos. Tenho trabalhado nesta antologia com bastante entusiasmo e tem sido bastante interessante o exercício de selecionar meus próprios poemas, reconhecendo aí mais uma chance de me autoconhecer através da minha produção. Também quero muito lançar uma edição das "guerras búdicas" (essa pela Patuá, a convite do querido Eduardo Lacerda), uma prosa poética diferente de tudo que já publiquei, e que vai dialogar com a linguagem das HQs. Esses dois projetos são os mais palpáveis, mas paralelamente sigo escrevendo outros livros de poemas, sem pressa, como a poesia pede. 
 
 

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