Vássia Silveira

18/10/2017 10h48

"O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas."

(Carlos Drummond de Andrade)


A filha reclama da mudança. "Calor infernal, mãe", diz enquanto seguimos a pé para o mercado público. Ela não gosta de caminhar pelas ruas, mas sempre que posso tento dobrar sua resistência na esperança de que em algum momento, a cidade lhe ganhe o coração.

"Tá vendo aquele coreto? Eu costumava sentar, ali, quando saía cedo da escola. E um pouquinho mais à frente tinha uma banca de bombom onde eu comprava fiado". Ela suspira, diz que sente falta da Alfândega, quando encontrava as colegas sem precisar que eu a acompanhasse. "Aqui não tenho coragem", explica. Entrelaço meus dedos nos seus, e tento esconder o olhar para que ela não leia nele a mesma aflição: "É uma questão de tempo, filha, logo você vai ver que não precisa ter tanto receio".

Mostro-lhe o rio, e conto-lhe que na infância eu tinha medo de ver as catracas atravessando-o, "Muitas histórias de cobra-grande". Ela ri, incrédula e zombeteira, "Ai, mãe, me poupe!". "Você não acredita?", insisto. E a pequena, cansada de minhas reminiscências, ameaça-me uma vez mais contra a parede: "Quando eu crescer e tiver minha casa não vou sair por aí, me desfazendo de tudo".

A sentença é dura. Mas não o suficiente para fazer com que eu me arrependa das escolhas. "Não me desfiz de tudo, meu amor. Apenas de coisas materiais". Ela faz um muxoxo, e em seguida me afaga com seus grandes e profundos olhos: "Eu sei, mãe".

Há tempo não me detenho senão no inefável. Tanto que, às vezes, o dia se faz triste sem razão aparente. Como agora mesmo, quando a manhã inadvertidamente se veste de um cansaço milenar – ainda que sua luminosidade faça das folhas das árvores um caleidoscópio.

Descanso, então, sobre o véu cinza e busco nele a indelével trama: os afetos, os desafetos, as tardes que morreram no asfalto sem que eu as fotografasse antes.

E como se um novo mundo abrisse sua boca para mim, vejo a poeira que sobe em círculos coloridos. Manhã, tarde, noite. O tempo sem caber mais no relógio. A menina espantada com os fios de neve. A mulher admirando as veias da mão.

No tronco da árvore frondosa, a cobra-grande. É dela esse reino, meio água, meio ar, meio terra. Foi um sonho, acho. Daqueles que nos fazem mergulhar na ancestralidade.

"E você sentiu medo?". Um pouco.


*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).