Vássia Silveira

24/10/2017 12h42
Lembro como se fosse ontem a primeira vez que pedi socorro a eles. O ano era 1999 e a ligação no meio da noite se deu graças a um incidente doméstico: a primogênita, então com dois anos, quis por à prova a proibição de mexer no ferro de passar roupa e acabou aos prantos com uma queimadura nos dedos que marejou meus olhos tão logo bati a vista nas bolhas.
 
Sem dinheiro ou cartão em mãos, não contei peteca nem pudores. Peguei o velho telefone, disquei para a farmácia perto de casa e expus ao atendente a frágil situação: precisava do remédio, mas só podia pagar no dia seguinte.
 
Dez minutos depois, chegava o motoqueiro com o pacote que selaria o mais longo e verdadeiro de meus casamentos – pois o que é um casamento, ou um bom casamento, para ser mais exata, senão uma mistura de confiança, afeto e companheirismo?
 
Posso afirmar, ainda que seja obrigada a contabilizar os anos nos quais estive ausente, que lá se vão quase duas décadas de bom relacionamento. Primeiro, com os donos do negócio –Olivaldo e Walter. E logo depois, com o seu João.
 
Ele, o seu João, acompanhou praticamente todas as minhas enxaquecas, algumas ressacas e, seguramente, os casamentos desfeitos. Também soube dos vermes, dos resfriados, das infecções de amígdalas e ouvido de minhas pequenas. E das vezes que para suportar a tristeza fui obrigada a engolir tarjas pretas. Seu João soube ainda das diversas mudanças de casa – uma delas, quando moramos na Estação Experimental, bairro que ficava relativamente afastado da farmácia, mas que de todo modo era lá que me faziam as entregas.
 
De 1999 até hoje, nos mudamos três vezes de cidade. E para minha alegria, todo retorno eu descobria que não apenas o seu João, mas também a minha conta continuavam no mesmo lugar! Lembro que em uma dessas mudanças, meu pai me telefonou preocupado querendo saber se eu tinha deixado alguma dívida com os companheiros da farmácia: “Eles me ligaram perguntando por você, então eu disse que estava bem, morando agora em Florianópolis”, contou-me na ocasião.
 
A verdade é que eu não tinha deixado para trás dívida financeira com a farmácia. Mas tenho consciência de que se fosse obrigada a dimensionar em valores de moeda corrente o quanto recebi deles, a história seria outra.
 
Semana passada fez dois meses que voltamos para a terrinha. As filhas não são mais crianças, as enxaquecas diminuíram consideravelmente, e como até agora nenhuma de nós apanhou um resfriado, ainda não precisei ir à farmácia.
 
Isso, claro, não me deixa tranquila.  Pois há em mim uma necessidade de reencontrar o povo de lá. Dias desses passei de noite, perguntei por seu João e pelo Olivaldo, um dos donos, mas não dei sorte de encontrá-los. O que foi uma pena, pois queria dizer-lhes que apesar das grandes redes de farmácia que começam a pipocar na cidade, eu continuo fiel àqueles que sempre me acompanharam.
 
Aliás, farei uma confissão sobre essas grandes redes: elas me enchem de nostalgia. Pese o fato da variedade, e mesmo do preço competitivo, me soam como lugares inóspitos. Uma espécie de templo à cordial impessoalidade: entrar nelas é como estar em qualquer farmácia de uma grande cidade, onde muito provavelmente não se encontram nem um Olivaldo e nem um seu João para nos salvar de pequenas misérias do cotidiano.
 

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