Cefas Carvalho

23/10/2019 00h13
 
Eu não danço
 
 
A festa estava um tédio, como era de se prever. Aniversário de uma prima distante, chata e arrogante. Eu me perguntava, enquanto bebia mais um uísque, porque não ia embora, quando a vi, sentada à mesa, próxima de mim, com duas amigas de cada lado. Como eu não a vira antes? Não era a mulher mais linda da festa, mas, ao contrário das outras, parecia brilhar, como as madonas das pinturas renascentistas, ofuscando quem lhe circundava. Mas, um brilho sereno e discreto. Ela olhava como se, na verdade, não estivesse ali, mas eu algum lugar longínquo. Quando percebeu que eu a olhava, sorriu rapidamente e voltou a cabeça para o lado. Voltei à minha mesa, mas não desisti de encará-la, até que, munido com a coragem dos que sentem o coração acelerar, esperei que estivesse sozinha e a abordei:
 
- Boa noite. Quer dançar?
- Obrigada. Eu não danço.
- Não gosta de dançar?
- Eu disse que não danço... – sorriu.
- Se não sabe dançar, eu te ensino...
 
Ela lançou um olhar de carinhosa reprovação que me inibiu, e parei com a insistência. Perguntei seu nome, Laura, e disse o meu; Ricardo. Ela convidou-me para sentar a seu lado.
 
 - Há algo em você que me encanta. Não me olhe como se eu fosse um conquistador barato. Estou falando a verdade. Talvez sejam seus olhos alheios a tudo...
 - Eu não sou uma mulher comum
 - Eu sei disso.
 - Não, você não sabe de nada – sorriu. Conversamos sobre banalidades – o tempo chuvoso, o trânsito caótico da cidade – e sobre nossos gostos – cinema europeu, literatura, poesia. Recitei trechos de Zila Mamede e Florbela Espanca para ela, que cantarolou, com uma linda voz de soprano, pérolas de Janis Joplin. 
Sim, eu estava encantado por ela e as horas se passaram sem que eu sentisse, até que a festa foi chegando ao fim. Convidei-a para bebermos um último drinque no balcão, mas ela recusou. Não posso sair daqui, sorriu.
 - Mas, sua família pode nos observar daqui mesmo. Aceite meu convite.
 
Ela sorriu, passou a mão em meu rosto suavemente e virou a cabeça para o outro lado, onde sua irmã – a quem eu já tinha sido apresentado – olhou-a com um sorriso enigmático.
 
 - Ricardo, eu tenho que ir...
 - Podemos nos ver amanhã? Dê-me seu número de celular...
 - Ricardo, há coisas que você tem que saber...
 - Você é casada? Noiva? Tem namorado? Seu pai é violento? Ora, se não acontece nada disso e nem eu sou um Montecchio e nem você uma Capuletto, o que mais eu preciso saber? – brinquei. Ela riu, mas amargamente e baixou a cabeça.
 - Margarete está chegando. Terei que ir... –suspirou. Olhei para o lado e vi a irmã empurrando uma cadeira de rodas e a colocando ao lado de Laura.
 - Ricardo, você pode ajudar minha irmã a me colocar aqui.
 
Compreendi tudo em um instante. Também em um instante eu teria que tomar a minha decisão. Pedi licença para tomá-la no colo e colocá-la na cadeira de rodas.
 
 - Agora eu poderia beber o drinque com você no balcão, se não fosse hora de ir, mas infelizmente, não dançaria.
 - Pois eu dançaria com você assim mesmo.
 - Vamos lá, seja um cavalheiro e empurre minha cadeira até o nosso carro.
 
Obedeci a ordem e fomos conversando até o estacionamento. Enquanto a mãe e a irmã se despediam da minha prima chata e família, ficamos fumando e conversando besteiras.
 
 - Posso te deixar em casa – disse.
 - Você não iria querer isso.
 - Eu quero isso, sim.
 - Você me deixaria por pena.
 - Negativo. Farei isso porque estou me apaixonando por você.
 
Laura me olhou e ficou em silêncio. Quando a mãe a Margarete voltaram e a família se preparava para entrar no carro, notei que Laura conversava algo com elas. Após alguns segundos de visível tensão, percebi as três mulheres me olhando e me avaliando. Por fim, Margarete veio até mim.
 
 - Laura quer que você a deixe em casa, e nós concordamos, embora isso não seja muito comum. Podem esticar a noite, claro, beber alguma coisa, jantar, mas, por favor, tenha cuidado com ela.
 - Pode ter certeza que cuidarei dela – respondi. Coloquei Laura no banco do passageiro, dobrei a cadeira de rodas para que coubesse no banco de trás e saímos.
 - Viu como sou diferente das outras mulheres?...
 - É sim, mas não pelas razões que está pensando.
Perguntei a ela onde queria ir, propus uma volta pela praia ou comermos uma massa em algum restaurante.
 - Ricardo, se eu não fosse assim você me faria essas mesmas propostas?
 - Claro – respondi.
 - Então vamos fazer as duas coisas.
 
Passeamos pela orla, vimos a lua cheia e seu efeito na maré e depois comemos, não a massa, mas camarão em um restaurante simples e discreto.
 
 Já rumo a casa dela, percebi uma névoa em seu olhar.
 - Se eu não fosse assim, você me deixaria em casa agora?
Hesitei. Como não soubesse o que dizer, ela continuou:
 - Esta noite está maravilhosa. Gostaria que continuasse...
 - Qual a sua sugestão?
 - Sou uma mulher adulta e sadia, com exceção das pernas, que não me mexem, desde o acidente, e tenho meus desejos e vontades. Você é um homem aparentemente adulto e sadio – riu – estamos nos conhecendo e temos a noite pela frente...
 
Não foi necessária mais nenhuma palavra. Conduzi o carro a um motel que havia ali perto.
 
Também não foram necessárias palavras de explicação. Claro que eu estava um pouco tenso, mas nada que o carinho e a excitação não suplantassem com sobras. Como se por instinto, como se tivesse feito tais coisas a vida inteira, levei-a de colo para a cama, depois a ajudei a tomar banho, abri um vinho e conversamos um pouco.
 
 - Ricardo, me beije como nunca beijou mulher alguma em sua vida – pediu, de repente, deitando-se. Comecei beijando as pontas dos pés. Mandei às favas a razão, que insistia em me lembrar de que ela nada sentia naquela parte do corpo. Afastei delicadamente suas pernas e mergulhei na flor cravada entre elas. Senti suas unhas em meus cabelos, primeiro afagando levemente, depois com força e as horas viraram uma sucessão de prazeres. Desnecessário registrar que em nenhum momento ela me pareceu diferente.
 
Acordamos às sete da manhã, tomamos café, um banho rápido e deixei-a em casa. 
 
 - Eu te vejo hoje?
 - Com uma condição.
 - Qual?
 - Se você me levar em algum lugar para dançar.
 - Pensei que não dançasse.
 - Com você eu dançarei.
 
Beijei-a e empurrei a cadeira até o hall da casa, onde Margarete nos recebeu com um sorriso aliviado. Despedi-me delas e rumei para casa. Pensei que estaria cansado, mas não consegui dormir. Coloquei uma música animada no som – What a wonderful world, cantada por Sam Cooke – e comecei a dançar sozinho. Pensando em Laura.
 

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