Ana Carolina Monte Procópio

04/11/2019 01h17
 
 
VENTOS DO SUL
 
 
 
Está meu coração nesta luta
meu povo vencerá, todos os povos
vencerão um a um. Estas dores
exprimir-se-ão como lenços até
espremer tantas lágrimas vertidas
em socavões do deserto, em tumbas,
em escalões do martírio humano.
Mas está próximo o tempo vitorioso,
que sirva o ódio para que não tremam
as mãos do castigo. Que a hora
chegue em seu horário, no instante puro
e o povo encha as suas  ruas vazias
com suas frescas e firmes dimensões.
Aqui está minha ternura para então.
A conheceis: não tenho  outra bandeira.
 
UM POVO VITORIOSO - Pablo Neruda
 
Chile, outubro de 2019.
 
A foto de um grupo de manifestantes empilhados uns sobre os outros segurando no alto uma bandeira que representa o povo mapuche e com fogo e por trás é de um simbolismo e de uma força que causam impacto imediato em quem a vê. A imagem impressionante viralizou nas redes sociais recentemente e está sendo a própria representação da revolta popular no Chile. 
 
Pela similitude de circunstâncias e pela própria representação visual, lembra outra imagem icônica, que é a do quadro A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix. Neste quadro, uma mulher, portando uma bandeira com as cores vermelha, azul e branca, está à frente de um grupo de pessoas, guiando-as em marcha, em luta. Oportuno lembrar que as três cores consagradas pela Revolução Francesa e que compõem hoje a bandeira da França, representam o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o povo francês. Todas têm que ter igual largura na bandeira nacional, a fim de demonstrar a equivalência de poder e valor entre tais elementos. Dessas, a vermelha simboliza exatamente o povo francês. O famoso quadro mostra, pois, uma mulher – a dama Liberdade – guiando o povo. Essa obra representa a Revolução de 1830 na França, de caráter nacionalista e republicano, que culminou com a deposição do rei Carlos X, que atentou contra a liberdade de imprensa e quis dissolver a assembléia legislativa.
 
As duas imagens trazem o povo reunido, portando uma bandeira que simboliza sua luta e mostram, ao fundo, fogo e fumaça. A vida imita a arte ou a arte imita a vida? Na verdade, os fatos históricos se repetem de tempos em tempos, de forma cíclica, desde que as mesmas circunstâncias estejam postas. As situações, sempre diversas, na verdade guardam elementos essenciais que as assemelham e que acabam por explicar eclosões sociais como as duas citadas. A insatisfação popular com a forma de exercício do poder, a revolta contra o arbítrio.
 
Ainda no mesmo contexto atual chileno, duas fotos de bailarinas dançando em frente aos tanques e às armas dos militares são um contraponto poderoso entre o instinto de vida e o desejo de morte. Nas duas fotos, uma bailarina vestida de vermelho segura a bandeira do seu país, coincidentemente também vermelha, branca e azul como a francesa, em frente às armas e tanques militares (links das três fotos abaixo). 
A manifestação popular de um país entristecido que começou por causa do aumento da tarifa do metrô de Santiago em 30 pesos acabou por virar uma revolução popular intensa e generalizada. O povo foi às ruas gritar sua voz calada por tantos anos. Desde que seu líder Salvador Allende foi morto no Palácio La Moneda por tiros que executavam o golpe de Pinochet, o povo chileno tem sido cobaia do laboratório de experimentos neoliberais imaginados pelos Chicago Boys, segundo a denominação dada por Milton Friedman. 
 
Os resultados, por tantos anos apregoados como exemplo para o mundo, o então chamado Milagre Chileno e, em especial, para a inteligentsia brasileira, agora mostram seu outro lado: o das consequências para a população. A revolta popular bem mostra como tem sido a experiência prática do ultraneoliberalismo, do programa de privatização total, de precarização e capitalização da Previdência. Desde os anos 80 vivendo sob as liberais mãos do mercado, os chilenos sentiram bem os seus efeitos e, não por acaso, o índice de suicídio entre os idosos e aposentados do Chile estão entre os maiores do mundo. O ambiente de insatisfação, de empobrecimento, de ausência do Estado e de desamparo chegou a um ponto de ebulição. Faltava a faísca para acender a insurreição popular. Mais de um milhão de duzentas mil pessoas foram às ruas em um país cuja população soma aproximadamente 18 milhões de pessoas. É impressionante o espírito de luta do povo chileno.
 
A ditadura de Pinochet no Chile, que durou quase 17 anos com esse único ditador à sua frente, foi uma das mais duras de todas as cruéis ditaduras militares da América Latina: mais de 3.000 mortos, mais de 200.000 exilados ou desaparecidos, torturas extremas, repressão, censura, violência, desrespeito aos direitos humanos e autoritarismo exacerbados, como sempre acontece nos regimes autoritários. 
 
A História deveria ensinar, mas de alguma forma parece que um povo se recusa a aprender com ela quando se permite, inerte, flertar com ou ignorar passivamente os sinais do fascismo ascendente.  
 
Pois bem, com o golpe militar de Pinochet, além de todo o macabro cenário político-social, também as desigualdades sócio-econômicas aumentaram muito em função da implementação do ideário neoliberal. Um aparte apenas para lembrar que a Inglaterra, que também adotou tal receituário pelas mãos de Margaret Thatcher, tem adotado várias medidas em sentido oposto, inclusive com a reestatização de empresas.
 
Voltando ao Chile, lá, ao contrário, o neoliberalismo se aprofundou gradativa e incessantemente nos últimos 30 anos e arrastou para as profundezas a grande maioria do povo. Este, agora, com muita dificuldade para sobreviver e ter alguma dignidade, deu seu grito, com a coragem e força que o caracteriza. 
 
O fato é que a população agora se levantou e tem enfrentado e resistido com muita bravura a violenta repressão policial de Piñera, que evoca tristes memórias no Chile; as mortes, a violência aos manifestantes, as violações de mulheres, os ataques aos estudantes, os carros-fortes e blindados nas ruas, a decretação do Estado de Emergência e o toque de recolher. 
 
As pessoas querem mudança. Querem uma nova Constituição, mas, antes de tudo, querem uma transformação profunda no sistema, que as contemple. Querem mais espaço, participação política e melhor distribuição de renda; uma previdência humana, que ampare o trabalhador após o término de seu período laboral; querem o fim dos privilégios e uma humanização do sistema, do governo, da política, do Estado, enfim. Após esse movimento de resistência, resta claro que o formato atual se esgotou. Algo novo necessariamente surgirá. 
 
O bravo povo chileno se insurgiu, mais uma vez. Que prevaleça, por tão atual, novamente a defesa do cantor e compositor Victor Jara do direito de viver em paz (Música: El Derecho de Vivir en Paz). Aliás, ele parece ter profetizado seu triste fim, morto que foi no Estádio Nacional do Chile diante de milhares de pessoas, pela ditadura recém-instalada por Pinochet, quando compôs na música Manifiesto: 
 
que el canto tiene sentido
cuando palpita en las venas
del que morirá cantando
las verdades verdaderas.
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).