Ana Carolina Monte Procópio

03/02/2020 01h28
 
ABISMOS E SERPENTES
 
 
“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando tu olhas durante muito tempo para o abismo, o abismo também olha para você.”
Friedrich Niestzsche
 
Os fenômenos sociais não acontecem do nada, não surgem de forma isolada e aleatória. Às vezes, por falta de compreensão deles, não percebemos seus movimentos, alguns bem evidentes. Os acontecimentos têm sempre relação com forças que estão atuando na sociedade, ainda que não nos apercebamos disso até a eclosão de fatos que, à primeira vista, podem parecer surpreendentes. É importante que saibamos “ler” as circunstâncias do nosso tempo para que o passado sombrio não nos visite, reeditando-se.
Há poucos dias lembrou-se o aniversário de 75 anos de libertação do Campo de Auschwitz pelos soviéticos, onde foram mortas mais de um milhão de pessoas. A magnitude do horror não encontra palavras correspondentes. Importa, pois, rever as circunstâncias que possibilitaram sua ocorrência.
 
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, os países vencedores e vencidos sentaram-se para uma negociação diplomática, na qual foi produzido o Tratado de Versalhes, em 1918. Por esse tratado, a Alemanha foi obrigada a pagar pesadíssima indenização aos países vitoriosos, além de ter perdido territórios valiosos para diversos países, como França, Polônia, Dinamarca e Tchecoslováquia. Esse ajuste foi um elemento crucial na criação do ambiente que levou à eclosão do nazismo e ao advento da Segunda Guerra Mundial. Não seria demais dizer que o primeiro passo desse conflito se deu em 1918, com o referido tratado multilateral que foi considerado pela Alemanha uma imposição.
 
Nos anos pós-primeira guerra, arrasada pelo conflito pelo qual foi considerada a responsável, devedora de imensas somas em dinheiro, a Alemanha experimentou uma crise econômica gravíssima, com recessão, desemprego e hiperinflação desenfreada. Com a economia destroçada, a qualidade de vida da população estava muito reduzida e as pessoas desesperançadas, cansadas, oprimidas. Nesse cenário, surgiu um personagem “novo” no cenário político alemão.
 
Adolf Hitler, militar de baixa patente, soube captar e manipular o forte sentimento nacionalista alemão a partir do sofrimento do povo para canalizar o ódio popular e apropriar-se do poder. Para que isso tenha sido possível, foi era necessário criar um inimigo público. No livro Mein Kempf (Minha Luta), Hitler diz que “se os judeus não existissem, seria preciso inventá-los”. Essa afirmação é uma porta aberta para se entender o mecanismo em que se amparou o edifício nazista. Era preciso haver um inimigo público, um objeto de ódio, pois a partir dessa canalização do afeto, a opinião pública seria, como foi, facilmente manipulada e levada a amortecer-se diante da barbárie mais que evidente que se anunciava e que de fato ocorreu.
 
Anos antes de ascender ao poder, Hitler já havia escrito tudo o que pensava a respeito dos judeus bolcheviques e isso não constituía segredo algum, estava publicado, inclusive. Como, então, compreender a adesão do povo alemão naquele momento a um projeto genocida? 
 
Precisamente a partir da designação de um inimigo público, ao qual foi atribuída toda a responsabilidade pelo mal-estar, pela miséria, pela dor, enfim, do povo. Não houve, em momento algum, desconhecimento das reais intenções do ditador eleito. Ele disse claramente o que pensava a respeito de grupos, etnias, inclinações políticas. Quem o apoiou, em nome da grandeza da pátria alemã, da vontade de Deus e da integridade da família, sabia perfeitamente o que estava apoiando e o que adviria daí. Incabível a alegação de inocência.
 
O magistral filme O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, mostra de forma fatídica o ambiente em que floresceu o nazismo, no seio da sociedade e no íntimo do sentimento do povo alemão. O discurso final do médico nazista que realizava experimentos pseudocientíficos é uma síntese de todo esse movimento; os últimos 10 minutos do filme são uma verdadeira aula de política. Aliás, esse filme é fundamental para entender a gestação de algo tão hediondo como o nazismo. Nos minutos finais, o personagem fala a respeito do futuro: “É como um ovo de serpente. Através da fina membrana, pode-se distinguir um réptil já formado.”
 
A Alemanha olhava, então, para o abismo. E tornou-se abismo também. A adesão popular foi o que permitiu que a banalidade do mal se espraiasse sem freios. 
Isso se deu com a manipulação das mentes a partir da expansão de um sentimento difuso e generalizado de ódio que foi se naturalizando na sociedade; pela divulgação do medo que passou a ser gerador de mais ódio; por meio de um discurso nacionalista e centralizador, ancorado na figura central de um grande pai que seria o redentor da sociedade degradada; pela espetacularização da política; pelo forte apelo à ordem, às normas e à unidade; pela anti-intelectualidade, aversão ao saber; pela repressão à cultura, às artes, ao pensamento, à diversidade, à pluralidade; pela imposição de um pensamento único, ditado pelo Estado e pelo déspota de plantão. Todos esses ingredientes, no contexto sócio-político e econômico em que ocorreram produziram o nazismo, com as conseqüências que a humanidade tristemente registrou e diz rejeitar.
 
Com tudo isso, há que se atentar para os abismos próximos a nós. A designação de um inimigo público, a incitação do ódio e a disseminação do medo estão a nos rondar e os abismos já estão diante de nossos olhos. 
 
Que a História nos seja guia e farol em tempos sombrios.

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