Daniel Costa

20/03/2020 20h40
 
QUEM TEM MEDO DE CONFINAMENTO?
 
 
Nestes tempos de COVID-19, em que a recomendação é o isolamento, me veio à cabeça o dia em que peguei uma virose daquelas de derrubar leão e tive que ficar arquivado em casa, entre lençóis e tarefas adiadas. Eu já estava resignado com esse destino até que na sexta o telefone tocou. Do outro lado da linha ouvi a voz de Arthur.
 
Meia hora depois ele tocava a campainha do meu ap segurando uma garrafa de Jack Daniel’s e o Blue Ray do “Concerto para Blangadesh”. Abri um sorriso de satisfação. Por precaução, não apertei a sua mão e mantive distância regulamentar. Uma taça de vinho foi sacada da geladeira. E, nesses termos, o meu confinamento ganhou outra tonalidade.
 
Depois de esticar as pernas nos almofadões da sala, eu coloquei pra rodar o show organizado por George Harrison. Não era um evento qualquer, já que além de reunir músicos do naipe de Boby Dylan, Eric Clapton, Ringo Starr, Billy Preston e Leon Russel, se tratava do primeiro grande espetáculo beneficente da história, que contou com a participação de mais de 40 mil espectadores, tendo gerado uma arrecadação monstruosa em prol das vítimas da fome em Bangladesh, país devastado pela guerra civil.
 
O bom era que Arthur conhecia a biografia de todos os músicos que tocaram no Madison Square Garden, arena localizada em Nova Iorque, que ancorou o espetáculo. Vez por outra, ele apertava no pause e lançava alguns comentários - quase sempre melhores do que a própria cena que estava prestes a acontecer - como na hora em que narrou quando Ravi Shankar afinava a sua cítara e a plateia, imaginando que o músico indiano havia iniciado o show, sustentou alguns calorosos aplausos até que Shankar resolveu exclamar ao microfone: “se vocês estão gostando do ensaio, imaginem quando eu começar a tocar!”
 
No momento em que Clapton e Harrison investiram nos últimos acordes de “While my guitar gently weeps”, Arthur já estava no ocaso do litro do bourbon. Ele encontrou na janela da sala uma saída para fumar o Marlboro, que repousava no bolso da sua camisa xadrez. Ao terminar, balançou o corpo até aprumar o passo, entrou no elevador, e me deixou pensando sobre como é possível encontrar solidariedade e diversão mesmo nos piores momentos, quando se ambiciona estar na beira de uma praia, olhando para o mar, entre peixes fritos e “coolers” de cerveja.  

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).