Ana Carolina Monte Procópio

13/04/2020 09h27
 
APÓS A TRAVESSIA
 
 
“Entraram, mas não encontraram o corpo do Senhor Jesus. (...) Por que buscais entre os mortos aquele que está vivo? 
Não está aqui, mas ressuscitou.“
                        Evangelho segundo São Lucas, capítulo 24, versículos 3;5-6. 
 
A Páscoa do Senhor é a festa da ressurreição, a celebração da vitória da vida sobre a morte, o imperativo do renascimento. Para os cristãos, é a mais importante das celebrações litúrgicas, que lembra e comemora a ressurreição do Cordeiro de Deus, torturado e entregue à morte por seu próprio povo. 
 
Neste ano de 2020, em meio a uma situação de pandemia como o mundo não experimentava há pelo menos um século, a experiência da Páscoa foi completamente diferente do que havia sido vivido até então. Por estranha coincidência ou por desígnio superior, para quem assim o crê, a quaresma foi vivida ao mesmo tempo que o isolamento social determinado pela necessidade do momento, segundo as recomendações emanadas pelas autoridades de saúde, ainda em vigor. Quarentena espiritual e social, na experiência cotidiana do isolamento, à semelhança dos dias de deserto e solidão. 
 
Jean-Yves Leloup, teólogo, psicólogo e filósofo cristão, lembra que Páscoa em hebraico significa ‘passagem’ (pessach) e que somos todos passantes, viajantes. Este tempo de recolhimento, qual uma verdadeira travessia no deserto, revelou-se na verdade uma travessia para dentro de nós mesmos, do nosso mundo interior e, ao mesmo tempo, para a conexão com o universo inteiro. Pois um vírus microscópico veio mostrar, sem deixar dúvidas, como partilhamos todos a mesma essência, dividimos os mesmos sentimentos, habitamos a mesma Casa. E é uma mesma tempestade que se abate sobre todos nós. 
 
Nessa tempestade, contudo, impossível não se dar conta das muitas variedades de barcos que estão a enfrentá-la. A pandemia é especialmente cruel para os mais desvalidos, para os que não têm segurança alimentar, moradia, condições adequadas de higiene, os mais pobres, os refugiados, os desfavorecidos. Há muito a se dizer a respeito de como os países, especialmente o Brasil, têm se posicionado ante o drama humano que é o alastramento da COVID-19, tema para uma outra conversa. Afora isso, o comportamento da sociedade, em suas diferentes esferas e estratos, tem revelado o melhor e o pior dos gestos.
 
Mas hoje, celebrando a Ressurreição de Cristo, é importante registrar que, apesar de tanto movimento no sentido da desconsideração do ser humano e sua exposição à morte como mero número a engrossar estatísticas, diante da condição frágil e vulnerável de grande parcela da sociedade, muitos têm se unido para praticar gestos de solidariedade, exercitando um olhar para o outro, percebendo seu sofrimento e se doando para minorá-lo. Em todo o mundo têm-se registrado atos de empatia, generosidade, acolhimento, doação. Também as manifestações de respeito e admiração pelos profissionais que não podem se isolar nem trabalhar de forma remota mostram que estamos nos abrindo para ver além de nós mesmos, para enxergar a multiplicidade dos aspectos da vida e a necessária interdependência de todos os seres. Outras formas de interação foram criadas; pessoas redescobrem na saudade o valor do convívio; afastam-se para melhor se encontrarem e se valorizarem; sabem que o amor pede o afastamento temporário.  
 
Na celebração da Missa da Páscoa ontem, em uma Catedral de São Pedro quase vazia em razão da pandemia, o Papa Francisco falou que “indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são palavras que queremos ouvir neste tempo. Queremos bani-las de todos os tempos” e referiu-se ainda à grande família humana e à privação dos afetos. O Papa também exortou ao cessar-fogo em todas as áreas onde há conflitos bélicos em curso e na necessidade de se ter esperança. Palavras inspiradas. Essa esperança exortada deve ser compreendida, por certo, como uma esperança ativa, viva, transformadora. Esperança na ação renascida de cada um. A Ressurreição de Cristo descortina uma nova perspectiva de vida após a travessia. 
 
 
 

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