Daniel Costa

18/04/2020 11h50
 
CORPO E ALMA
 
 
Depois de ver a live de Glay Anderson e embocar duas doses de um Bulleit Bourbon caí agora num show do Queen. Fred Mercury canta Bohemian Rhapsody. “Is this the real life?/ Is this Just fantasy?/ Caught in a landslide/ No escape from reality ...” E aí eu lembro dela, que gosta de rock e que numa hora dessas, há 33 anos, estava perto de nascer.
 
Na época, a minha angústia não era bem pela sua espera. Eu tinha 7 anos e o que me incomodava mesmo era o lance de estar longe da mamãe, que diante de um parto de risco teve que juntar as trouxas e se internar na Januário Cicco por algum tempo. Não sei ao certo quantas semanas ela ficou por lá. Mas aqueles dias me pareceram uma eternidade. Dormir em cama diferente, nas residências de familiares, junto com Daniela, ajudava muito pouco. Eu só queria voltar pra casa.
 
Distante dos meus pais e do mundo que me cercava, a sensação de abandono corria pelo corpo. Num certo momento, cheguei a colocar a culpa naquele ser desconhecido, ainda por nascer, que fulminava a rotina retorcendo o meu psicológico. Ver o reflexo no espelho era perceber um novo eu, transtornado pela perda das referências de uma hora para outra. E isso já era o bastante para que eu caísse diariamente no choro, mal acomodado no segundo quarto da casa dos meus avós, que acabou por ser a última parada, derradeira prisão antes que o dia 18 de abril chegasse para enfim me libertar.
 
A notícia chegou pela boca da noite, depois que eu havia retornado do aniversário de Robertinho. Vovô tinha acabado de regressar da maternidade e encontrou-me na antessala de sua casa, que ficava bem à frente da porta do primeiro quarto, dando para uma arcada larga que se abria para um acanhado jardim, que fazia vista para os fundos do Colégio Marista. “Nasceu! É uma menina!”.
 
Sem ver mamãe pelas redondezas, não me fiz de rogado e da boca da frustração saiu um “pode jogar na lata do lixo!”.  O reencontro e o encontro só vieram alguns dias depois, quando os meus pais foram buscar-me na escola, junto com ela. Naquele final de tarde, o par de olhos azuis acinzentados passou a fazer parte da existência, transformando o 18 de abril num dia de festa.
 
Ela se chama Marcela. E hoje faz 33 anos. Se caso eu fosse religioso, entoaria as glórias de quem está a alcançar a idade do nosso Senhor Jesus Cristo. Mas como não é o caso, lembro mesmo é da “Mulher de 30” e da admirável balzaquiana que ela se tornou. Talvez por isso, o fato de não poder vê-la hoje, como em todos os anos anteriores, não seja algo que propriamente acabrunhe. Eu sei que uma taça de vinho e uma orgia de filmes já serão suficientes para afagar o seu dia.
 
O uísque acabou. Só preciso conferir se está tudo bem com Clarice, que dorme sono profundo no quarto ao lado. Fico pensando comigo que seria legal se a minha filha, assim como a tia Marcela, gostasse do Queen, de Bowie, do Senhor dos Anéis e de David Lynch. E se vier a ser feminista, “pero no mucho”, até que também vai ser bacana.
 

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