Andreia Braz

20/06/2020 12h25
 
O poder da amizade
 
 
A vida sem ternura não é lá grande coisa.
                           José Mauro de Vasconcelos
 
Órfão de mãe, Claudinho é um menino que está preso a uma cadeira de rodas e descobriu no quintal de casa um mundo de fantasia que o permite esquecer por algumas horas suas limitações e todo o sofrimento causado pela madrasta, que finge ser dedicada e amorosa na presença do marido. Quando este sai de casa, ela bota as unhas de fora e chama o menino de “trambolho”, “quatro olhos”, sempre reclamando por ter de empurrar a cadeira de rodas e fazendo diversas chantagens para que ele a chame de “mamãe”. Outro dia ela abriu uma caixa de bombons e começou a saboreá-los na frente do garoto, que só teria direito a um deles se a chamasse de “mamãe”. A megera ainda ameaça deixá-lo sem comida caso decida contar ao pai tudo que passa nas mãos dela, o que inclui beliscões, apelidos e empurrões bruscos em sua cadeira.
 
O mundo de Claudinho, no entanto, começou a ganhar novas cores desde que conheceu a pequena Alice. A menina também é órfã de mãe e está morando com a irmã mais velha, Maria, na mansão onde a moça trabalha como empregada doméstica. O quintal da casa de Alice dá acesso ao jardim da casa de Cláudio, e essa foi a senha de que precisavam para mergulhar em um mundo mágico e esquecer as injustiças do universo dos adultos. Sim, pois Alice se apresentou como uma fada e a cada novo encontro traz uma novidade do “mundo da fadas” para o seu amigo. Todas as tardes o menino passa algum tempo ali, onde toma banho de sol e faz suas leituras. Agora, tem mais um motivo para ir ao jardim.
 
Claudinho e Alice são personagens da novela “Êta Mundo Bom!”, de Walcyr Carrasco, exibida pela Rede Globo em 2016, que está sendo reprisada desde abril. A trama, ambientada na década de 1940, conta a história de Candinho, um jovem que sai de uma fazenda no interior de São Paulo em busca de sua mãe biológica, de quem foi separado logo após o nascimento. A novela é inspirada no filme “Candinho” (1954), estrelado por Mazzaropi, e no conto iluminista “Cândido ou O Otimismo”, do filósofo francês Voltaire, publicado pela primeira vez em 1759. O conto narra os infortúnios de Cândido após a expulsão do palácio por tentar beijar sua amada Cunegundes e a comédia dirigida por Abílio Pereira de Almeida tem um enredo semelhante ao da novela.
 
Voltando à amizade de Claudinho e Alice. A menina sempre aparece com doces e chocolates para o amigo e outro dia trouxe algo diferente, uma imensa bola colorida que fez Claudinho se sentir mais confiante ao conseguir segurá-la durante a brincadeira. A “fadinha”, como ele a chama, vai ajudá-lo a descobrir a alegria de viver e fazer com que o menino se aceite como é. Apesar de sentir um pouco de medo da “bruxa”, como chama a madrasta de Claudinho, Alice vai enfrentá-la bravamente para defender o amigo.
 
Essa amizade me fez lembrar o menino Zezé, protagonista do livro “O Meu Pé de Laranja Lima”, de José Mauro de Vasconcelos, que conversa com Minguinho, seu amado pé de laranja lima. Zezé tem um outro amigo muito especial, Manuel Valadares, o portuga, que o leva para pescar, tomar banho de rio e passear de carro. Um dia, depois de terem passado algum tempo sem se ver, Zezé disse para o amigo: “Eu nunca mais quero sair de perto de você, sabe? Porque você é a melhor pessoa do mundo. Ninguém judia de mim quando estou perto de você e sinto um ‘sol de felicidade dentro do meu coração’”.
 
Voltando à novela “Êta Mundo Bom!”. Outra dupla encantadora é formada por Candinho e Pirulito. Ao chegar na cidade e se abrigar em uma praça, na companhia do seu burro Policarpo, Candinho encontra Pirulito, um jovem que fugiu de casa e vive nas ruas, e ali nasce uma grande amizade. Algum tempo depois, Candinho encontra o professor Pancrácio, um velho amigo da fazenda, que também está morando na cidade grande e os acolhe em sua casa, mesmo com parcos recursos. Um sábio professor de filosofia que não encontrou emprego na capital e pede esmolas encarnando vários personagens. O disfarce de cego é um dos mais utilizados porque, segundo ele, causa mais comoção. Cigana, freira e ex-combatente foram alguns dos seus personagens.
 
Todas essas histórias de amizade aquecem meu coração e me fazem lembrar com saudade dos amigos que não vejo há três meses por causa da pandemia do novo coronavírus. Mesmo que possamos nos falar por chamadas de vídeo, o que garante uma certa proximidade, nada se compara a um encontro presencial, com direito a abraços, olhares, sorrisos e toda aquela alegria que é própria dos amigos quando se reencontram. Nada pode substituir a força de um abraço ou uma boa conversa sem hora para acabar...
 
O alento para esses dias incertos, e agora chuvosos, é, também, a conversa nos grupos de WhatsApp. Não sou uma participante ativa desses grupos, confesso, embora esteja em alguns, mas sempre que posso procuro me inteirar do que está acontecendo por lá. E tem sido assim nos grupos de amigos da faculdade, de escritores e outros de que participo. Passo boa parte do dia na frente de um computador fazendo revisão de textos e a tendinite não me deixa passar muitas horas digitando mensagens no celular. Além disso, tem a sensibilidade causada pela luz da tela (astigmatismo), que vez por outra provoca irritação nos olhos, o que exige certo repouso. Ainda bem que existem os áudios (eles sempre me salvam). De todo modo, tenho tentado ficar inteirada das conversas de alguns grupos, Candeeiro (clube de leitura), Edgar Morin (grupo de amigos jornalistas), Letrinhas (UFRN), Turismo UERN, além dos grupos de escritores e do trabalho.
 
É verdade que a pauta, na maioria das vezes, tem sido o cenário desolador do nosso país frente à pandemia do novo coronavírus, as incertezas em relação ao futuro, o cenário político atual, a situação das classes menos favorecidas, a educação pública, o colapso no sistema de saúde, a (des)necessária retomada das atividades econômicas – ou a lógica perversa do capitalismo, o que certamente aumentará o número de pessoas contaminadas. Mas o tema das conversas não se resume apenas às dificuldades enfrentadas em tempos de pandemia. Se, por um lado, cada um desabafa sobre as dificuldades que estamos enfrentando, por outro lado, também trocamos palavras de conforto/incentivo e fazemos planos para quando tudo isso terminar. Afinal, como diz Rubem Alves, “Amizade é o encontro de duas solidões”.
 

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