Andreia Braz

29/08/2020 10h49
 
Último desejo...
 
 
 
[...] o que você faria?
Se só te restasse um dia
Se o mundo fosse acabar
Me diz o que você faria?
 
                          Paulinho Moska/Billy Brandão
 
 
Tenho lido na internet alguns textos sobre pacientes terminais cujos desejos são realizados pela equipe do hospital onde estão internados. Quase sempre termino a leitura desses textos debulhada em lágrimas e pensando no quanto devemos aproveitar a vida e dar valor às coisas mais simples. Sim, porque é exatamente isso que essas histórias têm me ensinado. Em São Paulo, por exemplo, um paciente em tratamento paliativo por conta de um câncer disse à equipe do hospital que desejava participar de uma roda de samba. Seu desejo foi atendido e a apresentação do grupo convidado por uma técnica de enfermagem acabou comovendo toda a equipe do hospital e alguns pacientes ali internados, que, aliás, foram consultados sobre o barulho que seria causado pelo evento. Todos, pacientes, médicos, enfermeiros e equipe de apoio, se empenharam para que o homem realizasse seu sonho. “Não deixe o samba morrer”, composição de Aloísio Silva e Edson Conceição, foi um dos clássicos que animaram o quarto do paciente.
 
Isso aconteceu no Hospital das Clínicas de Marília, em São Paulo, em julho de 2017. O servidor público José da Penha estava conversando com uma técnica de enfermagem quando esta lhe perguntou que desejo ele gostaria de realizar. Seu José não pensou duas vezes e deu uma resposta certeira: “Tenho saudade de uma roda de samba, do meu pandeiro. Tudo aquilo que a gente teve de bom na flor da idade”. 
 
O pedido tem uma explicação: seu José costumava tocar pandeiro e ouvir samba com a família. Para ressaltar a importância desse tipo de ação, destinada geralmente a pacientes em tratamento paliativo, a técnica de enfermagem afirma que o papel do hospital não é só curar um paciente, mas proporcionar dias felizes. Li essa história no portal do G1.
 
O mesmo portal também noticiou o falecimento de seu José, aos 63 anos, em janeiro deste ano. A causa da morte foi insuficiência respiratória. Ele morreu em casa, sob os cuidados da família. Partiu cercado de amor.
 
Outra história que me deixou bastante emocionada foi a de um rapaz que sonhava em conhecer o mar. Essa eu li no portal “Razões para Acreditar”, que sempre traz relatos comoventes e histórias marcadas pela solidariedade e amor ao próximo. Natural de Santa Inês, no Maranhão, Marcos Antônio, 29 anos, estava internado na capital do estado para receber cuidados paliativos. Fora diagnosticado com sepse e um câncer de intestino em estágio avançado. Estava internado desde o início do ano. Certo dia perguntou a uma das enfermeiras se o hospital poderia realizar seu sonho de conhecer o mar. Alguns dias depois, expressou novamente seu desejo durante a visita multidisciplinar e o médico prometeu “água de coco bem gelada e sorvete, com direito a sininho do sorveteiro”. Aquele foi o primeiro sorriso do paciente desde sua internação, disse o profissional.
 
A equipe do Hospital Dr. Carlos Macieira (HCM) não só realizou o desejo de Marcos Antônio de conhecer o mar, como também lhe proporcionou um momento sublime ao levá-lo para contemplar o pôr do sol, tomar sorvete e água de coco na orla de São Luís. Mesmo debilitado, o paciente estava lúcido e expressou a felicidade de estar ali. Uma equipe composta de médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, psicólogo e assistente social foi responsável por tornar realidade o sonho do rapaz, que demonstrou uma alegria genuína com esse gesto tão sensível de toda a equipe. Foi necessária a autorização do hospital e a presença de um familiar para acompanhá-lo em seu inusitado passeio.
No vídeo gravado pela equipe do hospital, Marcos aparece tomando sorvete e água de coco. “Eu estou muito feliz! É uma oportunidade única essa que estou tendo. Agora, sim, posso dizer que realizei o meu sonho”, diz, com dificuldade de respirar. Ele já tinha ido a São Luís outras duas vezes, mas não tivera a oportunidade de conhecer o mar. Somente um desejo não pôde ser realizado naquele dia: o de tomar banho de mar. O paciente morreu quatro dias depois. Mais uma vez, não consegui segurar as lágrimas com essa história.
 
Esse tratamento humanizado recebido pelos pacientes do HCM é destacado na fala de Claudionor Gomes, coordenador de enfermagem da UTI do hospital: “Às vezes, a gente quer oferecer o que nenhum medicamento faz: o calor humano, compreensão e companhia. O mais importante da vida está nos prazeres mais simples”. Sábias palavras. Os cuidados paliativos estão centrados na qualidade e não na duração da vida. Oferecem assistência humana e sensível para pessoas que estão nas últimas fases de uma doença incurável.
 
O deleite de Marcos perante o misterioso mar, cercado de cuidados e afeto, me fez lembrar estes versos de Zila Mamede: “vivo hoje areias ardentes / sonhando praias perdidas / com levianos marujos / brincando de se afogar, / com rochedos e enseadas / sentindo os afagos do mar”. Os versos são do poema “Elegia”. Marcos não vivenciou a experiência de tomar um banho de mar, mas, assim como a poeta de “Mar Morto” e “Canção do Afogado”, sentiu a força da brisa e se deixou inebriar pelos encantos do mar. Se tivesse conhecido os versos de Zila, talvez Marcos os tivesse recitado enquanto se deleitava com o pôr do sol e escutava o barulho das ondas: “Pudessem meus olhos vagos / ser ostras, rochas, luar, / ficariam como as algas / morando sempre no mar”...
 
A experiência de Marcos também me fez lembrar a canção de Vinicius “Uma tarde em Itapoã”, imortalizada na voz de Toquinho, pois o deleite do eu lírico também poderia ser o do maranhense que estava se despedindo da vida com a alegria do sonho realizado. Um sonho que para muitos pode parecer banal, especialmente para os que vivem em capitais litorâneas, como é o caso de Natal, que tem praias como Ponta Negra, dos Artistas, Redinha, entre outras maravilhas que nos deixam estonteados perante sua beleza. 
Se tudo pudesse ser diferente, meu desejo para aquele jovem que deixou a vida tão cedo seria este, com a licença do mestre Vinicius: “Um velho calção de banho / O dia pra vadiar / Um mar que não tem tamanho / E um arco-íris no ar / Depois na praça Caymmi / Sentir preguiça no corpo / E numa esteira de vime / Beber uma água de coco”... 
 
As duas histórias contadas na crônica de hoje, e tantas outras que leio ou escuto diariamente, me ensinaram algumas coisas importantes que estou tentando colocar em prática, apesar das inúmeras cobranças da vida moderna: trabalhar menos, valorizar mais os momentos em família, sair mais com os amigos, aprender a dançar, ir à praia... Coisas simples como tomar uma água de coco em frente ao mar ou apreciar uma roda de samba, passaram a ter ainda mais valor depois de conhecer as histórias de Marco Antônio e de seu José. A finitude da vida está aí para nos ensinar, diariamente, que devemos “abraçar todas as horas”, como diz o filósofo Sêneca em carta a Lucílio. Ele também diz que “o tempo que passou pertence à morte”. Carpe diem! 
 

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