Théo Alves

06/09/2020 00h04
 
Para construir uma manhã de domingo 
 
 
Construir uma manhã de domingo é uma tarefa das mais exigentes: é necessário ter plantas baixas muito precisas, as ferramentas certas e adornos improváveis para outros dias. É justo lembrar que as manhãs de domingo são uma exceção às semanas, já que a vida é sempre segunda-feira.
 
Vamos às instruções:
 
Para uma manhã de domingo de pontas bem aparadas e pele muito saudável, é imprescindível desligar os despertadores. Celulares, alarmes, relógios... tudo deve ser sequestrado de véspera, condenado ao esquecimento como se jamais fossem voltar a tocar. A violência de um despertador é tão pesada quanto os gritos de uma ambulância. Sob o véu silencioso das manhãs de domingo, essa violência é elevada até uma potência difícil de calcular. Por isso, não se esqueça: sufoque os despertadores desde o sábado à noite, no mínimo.
 
Abra as janelas. Este é outro dos itens fundamentais para se fazer uma manhã de domingo clara e minimamente decente. Nenhuma manhã de domingo é possível se não houver uma janela, algo por onde a luz entre aos poucos despertando a casa e removendo a poeira e o mofo dos fantasmas que dormem ao lado de sua cama. Não creio ser necessário mencionar, mas o faço: é terminantemente proibido por decreto que chova nas manhãs de domingo, e pode ser considerada contravenção grave caso ocorra.
 
Ouça música. Ouça música um pouco mais alta que o usual. Não incomode seus vizinhos, claro, porque ninguém quer as nuvens de mau humor rondando a casa, mas ouça boa música: dê preferência a vozes poderosas e longos solos de guitarra. Vozes graves que sabem se comportar com leveza não costumam falhar. Um bom piano ou a flauta de Herbie Mann podem ser boas sugestões para os ouvidos mais delicados. Ouvir os jovens, mesmo quando jovens de outros tempos, pode ser uma ótima solução: Jorge Ben Jor no começo dos anos 70, por exemplo; Martins e Zé Manoel nos anos de agora.
 
Sobre ouvir música, tocar algo que se possa cantar junto pode incrementar ainda mais essa manhã de domingo. Obviamente, cantar bem ou mal não faz diferença alguma para esse processo de construção, já que a energia do canto é muito mais espiritual que da matéria. Manoel de Barros sugeria mazurcas de Chopin, o que acho justíssimo, ainda que apenas seja possível solfejá-las. Uma de minhas sugestões favoritas para essa construção é Mahalia Jackson.
 
Instigar memórias pode contribuir para um bom domingo, mas também pode representar perigos ao produzir falhas no alicerce. Por isso, é necessário saber de antemão os efeitos que as lembranças geram nas estruturas dos dias. Especialmente os arquitetos de domingo iniciantes precisam estar atentos a esse aprendizado.
 
Bares, almoços em família, jogos de futebol e praias podem ser adornos interessantes para a decoração de um domingo já pronto. Mas é preciso lembrar que a corrente dos puristas julga a inclusão desses elementos como uma espécie de trapaça industrializada na arquitetura do dia, uma espécie de doping. Os puristas apenas.
 
Apresentada a receita, é imprescindível dizer que os domingos bem feitos levam tempo considerável para serem erigidos, portanto cabe informar que não se pode tocar suas construções uma vez por semana. Obras como essas costumam tomar duas, três, às vezes mais semanas. 
 
Por isso é preciso escolher bem o espaço de construção para o dia. Se hoje for um domingo propício, sugiro suspender a leitura desta crônica e ir viver, que viver o presente é a viga central de um domingo de boas fundações e bonito como uma catedral.
 

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