Bia Crispim

11/09/2020 00h02
 
A incrível história dos ratos de laboratório que se tornaram cientistas
 
Durante esses últimos dias, eu tenho debatido com vários colegas sobre a questão da ocupação de pessoas trans nas mais diversas esferas da sociedade. A invisibilidade a que essa população fora submetida desde sempre parece estar com seus dias contados, pois, é cada vez mais comum encontrarmos travestis e mulheres trans não mais nos espaços de prostituição e informalidade e sim, dentro dos espaços de construção de saberes, como escolas, cursinhos preparatórios, universidades... (sendo alunas ou professoras, sim, professoras!)
 
Em 2018, Amara Moira, uma professora travesti do estado de São Paulo, defendeu seu doutorado em Literatura pela Unicamp e se tornou uma das poucas travestis doutoras nesse país. Segundo ela, “ao mesmo tempo em que isso é uma celebração, isso é, uma sociedade reconhecendo o inusitado de ver uma pessoa trans, travesti, doutora, isso também é uma denúncia do quanto estamos afastadas desse espaço que deveria ser nosso também.”
 
Sim. Podemos ocupar a universidade. Podemos produzir ciência. Pois, ainda segundo Amara Moira, “não existe nenhum assunto que a rigor seria alheio à existência travesti. Tudo nos diz respeito, podemos estudar tudo dentro das universidades.”
 
Em um vídeo gravado para um evento sobre a visibilidade de pessoas trans a professora/travesti/doutora nos presenteia com inúmeras reflexões sobre a ocupação de espaços por travestis e pessoas trans, sobretudo do espaço universitário. Algumas dessas ideias estão transcritas a seguir: 
 
“Quando a gente pensa na universidade, a princípio, a gente entra dentro desse espaço como assunto, como matéria, como coisa a ser estudada, grupo a ser estudado, como ratos de laboratório, mesmo.” (...) “Primeiro, então, entramos como assunto, como objeto de estudo e agora a gente vai vendo cada vez mais pessoas trans ocupando esse espaço como pessoas não só a serem estudadas, mas estudando também. Estudando a si próprias, estudando a própria comunidade, mas estudando a sociedade onde a gente se formou, onde a gente se criou.”
 
Sair da condição de ratos de laboratório para cientistas é um enorme avanço no tocante à ocupação de pessoas trans na sociedade. Essa troca de papéis não só permite que deixemos de contribuir apenas como objetos de estudo, mas também como produtoras de conhecimento. Permite que deixemos de ser coadjuvantes, para sermos protagonistas de vivências e oportunidades antes nunca vislumbradas por essa comunidade.
 
Amara Moira, ainda nesse vídeo diz: “O nosso olhar é muito revelador sobre essa sociedade. Eis um dos pontos mais intrigantes desse novo momento da existência trans no país. Quando as pessoas começam a se dar conta que aquilo que a gente tem a dizer sobre essa sociedade é muito revelador. A forma como a gente olha, o lugar de onde a gente olha, ele é muito revelador. Então a gente chega com essa contribuição única, muito poderosa dentro da universidade.” Apesar da sociedade ainda acreditar que “a gente só teria condições de estudar a nós mesmas. A nossa contribuição seria destrinchar e revelar outros aspectos da nossa própria existência.”
 
Podemos mais. E se chegamos “nesses espaços não mais como ratos de laboratório, como objetos de estudo, agora como produtoras de saber”, devemos contribuir com nossas potencialidades para a construção de um mundo onde travestis e pessoas trans ocupem quaisquer espaços. E mostrar para a sociedade e para a universidade, especificamente, que “ela tem muito a aprender conosco.”, como diz Amara Moira em parte do vídeo.
 
O mais fascinante dessa história de ocupação e resistência não é somente ver travestis doutoras professoras, mas a grande mudança social que promoveremos ao sairmos cientistas de dentro das universidades. E fora delas continuaremos ocupando espaços e suscitando provocações à sociedade, transformando-a positivamente. 
 
Pra encerrar, deixo uma provocação (intrigante, diga-se de passagem) feita por Amara ainda no vídeo em questão: “E se nós nos tornássemos professoras dos filhos da geração que tentou nos expulsar da escola?” 
 

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