Daniel Costa
16/09/2020 11h40
Receita para felicidade em tempos de covid (ou em qualquer época)
Trabalho, estudo, casa, filha. Não tem sido fácil. A pandemia atrapalha a vida de qualquer um. Luciana se lamenta, e ao mesmo tempo faz mea culpa. Afinal, sob uma perspectiva mais ampla, em comparação com a vida de muitas outras pessoas, nós estamos a navegar numa espécie de transatlântico, ainda que em mar revolto.
Levanto o livro de Philippe Lançon alguns centímetros do rosto, o suficiente para mostrar-lhe o título: "O retalho". É uma forma de corroborar com sua ressalva. Explico que se trata da autobiografia romanceada de um jornalista francês, que sobreviveu ao atentado terrorista no semanário Charlie Hebdo. E retalho, no caso, é como ficou o seu rosto após vários tiros à queima-roupa.
Pelo whatsapp, um amigo pede ajuda financeira pra custear os cuidados com a irmã, que sofre de paralisia cerebral e por isso precisa de uma série de apetrechos terapêuticos. A pandemia arrastou as contas da família. O jeito foi apelar para uma vaquinha virtual. Lembro outra vez do romance de Lançon, do momento em que ele está às voltas com dores insuportáveis na garganta, travando batalhas contra escaras e com sonda gástrica a tiracolo que dificulta seus movimentos.
Não dá pra reclamar de um dia soturno. Transfiro alguns reais para a irmã do colega. A tristeza tenta tomar conta de mim. Mas repito comigo que está tudo bem. Eu e minha família enfrentamos estes tempos em navio firme. Pedro liga pra dizer que não vê a hora de chegar o fim do pesadelo pandêmico. Digo a ele que pesadelo é acordar na cama de um hospital, sentindo falta de ar, com o rosto desfigurado e cateter a queimar os braços; ou precisando fazer cotinha a fim de comprar cadeira de rodas e fraudas geriátricas. Ele esboça um sorriso e fala que os dias têm sido difíceis até pra quem não deveria ter do que reclamar.
Agora, a embarcação se agita. Estou na enfermaria do São Lucas contando os minutos para entrar na sala de cirurgia. Na televisão, o Jornal Nacional reporta a história da filha da primeira mulher que morreu de covid, que também perdeu as avós e dois tios. Antes que a notícia chegue ao fim, alguém me chama na outra ponta do corredor. É a enfermeira. Levanto. Guardo o livro na bolsa. Rodrigo, primo, médico, está a me acompanhar. Sou colocado numa maca. Recordo do escritor francês, do sofrimento da irmã do meu amigo, de Pedro, de Luciana, das reclamações do cansaço de todos os dias, e penso comigo: nesse mar de altas ondas, continuo a navegar num transatlântico.
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