Andrea Nogueira

14/11/2020 00h29
 
Amor
 
Certo dia eu estava na antessala de uma vara criminal da Capital Potiguar aguardando a chegada da Juíza. Imbuída em meus pensamentos fui despertada pela fala de uma moça jovem, com barrigão saliente, que perguntava à servidora quando seria dada a ela a autorização para abortar.
 
Momento intrigante.
 
Ouvi quando a servidora da Vara disse à moça, de forma seca, que era preciso aguardar a juíza decidir!
 
A moça ali sozinha, continuou seu apelo mostrando que a barriga já estava bem grande e tinha medo do que poderia acontecer. E a servidora continuava a explicar que ela tinha que esperar, ao tempo em que ia sumindo entre os armários da sala, em direção a uma daquelas portinhas que a levam para bem longe do olhar das pessoas que buscam atendimento.
 
Eu ali, chocada com o diálogo constrangedor, perguntei a moça com quantos meses ela estava. E ela já foi me adiantando que o filho não tinha o cérebro, que já estava na décima quarta semana de gestação e que não tinha ideia de quando sairia a autorização judicial para abortar. 
 
É essa a realidade: Juízes ocupados, com acúmulo de processos; pessoas grávidas por estupro, ou correndo risco de vida, ou com feto acéfalo; mulheres contando com a defensoria pública e com a lentidão do poder judiciário; pessoas rindo e rezando nas igrejas; outras sofrendo e chorando sozinhas; pessoas fazendo abortos clandestinos antes de completar um mês de gestação, mesmo correndo o risco de serrem presas; outras pessoas com mais de quatro meses esperando a autorização judicial que a livrará de uma prisão.
 
A questão tão polêmica sobre o aborto não paira sobre ser certo ou errado. Essa confusão é feita por uma parcela da sociedade que rigidamente garante saber o que é melhor para uma mulher que engravida. Aliás, essa parcela da sociedade, na verdade, nem se importa com a mulher que engravidou, mas se importa com seus valores morais e religiosos. Essa parcela da sociedade quer a multiplicação dos filhos, mas não aceita a adoção destes por homossexuais. São pessoas que não matam na hora, mas deixam ao relento milhares de crianças abandonadas. Essa parcela da sociedade ama a vida, mas não se envolve proximamente com a mãe solteira ou com o filho bastardo. É muito amor. Estranho amor.
 
A questão polêmica sobre o aborto paira sobre retirá-lo do código penal. É sobre não colocar uma mulher que abortou numa penitenciária. É sobre concentrar as políticas públicas e as responsabilidades da pessoa que aborta no âmbito civil.
 
Abortos clandestinos existem. Criminalizar o tema não resolveu este problema até hoje. Mas certamente vem amenizando a consciência das “pessoas de bem”, “esclarecidas”, com “criação adequada”, valores morais e cristãos. A criminalização nunca diminuiu o quantitativo de abortos clandestinos que matam milhares de mulheres por dia e nunca amenizou a dor das famílias que fazem aborto.
 
Se o motivo for justo, ou seja, se for legal (no caso de estupro, por exemplo), esperar pelo juiz e pelo ministério público é necessário. Esperar, como aquela moça já com barrigão. E para aquela e outras moças se diz: “Aborte agora não. Só depois. Aguente aí. Afinal, fazendo algo dentro da lei não tem problema.”
 
Já dizia Frida Khalo: “Eu não quero pense como eu, só quero que pense”.
 

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