Andreia Braz

01/12/2020 00h11
 
De como nasce uma amizade 
 
 
 
O amigo: um ser que a vida não explica 
Que só se vai ao ver outro nascer 
E o espelho de minha alma multiplica...
 
                                                Vinicius de Moraes
 
 
 
Nosso primeiro contato foi via e-mail. Ana Cláudia Trigueiro enviou-me uma mensagem para saber a possibilidade de eu revisar um livro seu, um romance infantojuvenil ambientado no Engenho Verde Nasce, em Ceará-Mirim. A maior parte da história se passa no século XX, mas também há algumas incursões pelo século XIX. Disse que eu havia sido muito bem recomendada por dois amigos dela, que tinha bastante interesse em fazer o trabalho comigo, o que procurei retribuir com generosidade e simpatia, apesar das limitações do contato virtual. 
 
Após esse contato inicial, fiquei aguardando que ela me enviasse o arquivo para fazer o orçamento e darmos início ao trabalho. No entanto, isso demorou um pouco a acontecer, o que não foi de todo negativo porque eu andava bastante ocupada com algumas revisões e estava me preparando para ir ao III Fórum Nacional do Revisor de Textos, que aconteceria na cidade de São Carlos-SP. E foi justamente em um desses dias que antecederam a viagem que recebi uma ligação de Ana Cláudia, para falar sobre o tal e-mail e dar algumas explicações sobre o trabalho. Era um sábado pela manhã e eu estava concluindo a revisão de um livro técnico quando ela me telefonou. 
 
Inicialmente, quis saber como funcionava o trabalho de um revisor de textos, que tipo de mudança ele fazia, quais eram suas intervenções no texto etc. Apesar de ser uma autora com três livros publicados, entre eles o romance “Francisca” (Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2015), ela disse que nunca havia mantido um contato direto com esse profissional, e por isso o interesse em saber mais sobre o nosso métier. Expliquei minha forma de trabalhar e procurei deixá-la tranquila em relação à insegurança de que seu texto fosse modificado substancialmente sem sua devida autorização. Acho que me fiz entender e ela pareceu estar convencida daquelas explicações iniciais. Conversamos bastante e ficou acertado que ela faria os últimos ajustes no texto para me enviar o arquivo logo em seguida.
 
Após a ligação, retomei o trabalho que estava revisando e fiquei esperando o tal e-mail. Pela demora, achei que ela houvesse desistido. Ao receber o arquivo, expliquei que ficaria ausente durante uma semana, em virtude do evento em São Paulo, para o qual já estava levando dois trabalhos na esperança de revisar alguma coisa no pouco tempo livre que me restasse, à noite, quando chegasse ao hotel, ou nas primeiras horas da manhã, antes mesmo que minha colega de quarto acordasse.
 
Nosso primeiro encontro aconteceu pouco mais de um mês depois daquela ligação telefônica, foi numa quarta-feira à noite. Aquele era um dia muito especial para Ana Cláudia e sua família, era o aniversário do seu esposo, Mário César, que ficou passeando no shopping com as crianças enquanto conversávamos sobre a revisão do livro e degustávamos, ela uma sopa de legumes, e eu um prato de cuscuz com queijo de coalho e carne de sol, acompanhado de um café com leite. 
 
Mas aquele não foi apenas um encontro com uma cliente, para a qual eu prestaria um serviço e talvez nunca mais voltasse a encontrá-la. Desde o início, senti que nascia ali uma amizade, uma parceria. A conversa sobre o novo livro dela foi apenas o pretexto para um agradável bate-papo sobre literatura, especialmente a literatura do Rio Grande do Norte, tema sobre o qual adoro conversar. Falei dos meus autores prediletos (Berilo Wanderley, Zila Mamede, Américo de Oliveira Costa, Câmara Cascudo, Newton Navarro, Luís Carlos Guimarães...), focando em dois escritores contemporâneos, Tarcísio Gurgel e Nelson Patriota, cujo trabalho conheço mais de perto, especialmente o deste último, cujos três últimos livros tive o privilégio de revisar, além de uma série de artigos publicados na Tribuna do Norte e um livro de contos que deve ser lançado em breve.
 
Ela ficou encantada quando falei da importância de Nelson Patriota como crítico literário, de sua posse na Academia Norte-rio-grandense de Letras, sua premiação pela União Brasileira de Escritores – UBE (em 2013, recebeu o Prêmio Peregrino Júnior “Pela divulgação da literatura e labor cultural”), seu trabalho como tradutor e de suas obras como ficcionista (contos, poemas, romance). Afinal, como disse seu amigo e também jornalista Tácito Costa, em homenagem a sua posse na ANL, “Nelson é um dos mais completos intelectuais do estado”. 
 
A impressão que tive naquela noite foi a de que estava reencontrando uma velha amiga, tamanhas as nossas afinidades e a naturalidade com que conversávamos sobre os assuntos que iam surgindo em decorrência do tema em questão. Sabe aquela impressão de que a pessoa esteve ao seu lado a vida inteira? Tinha razão o mestre Rubem Alves quando disse que “Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre”. 
 
Além das indicações de leitura, promessa de empréstimos de livros, eventos literários, nossa conversa ainda teve dois desdobramentos significativos: o artigo de Nelson Patriota sobre “Francisca”, publicado no Substantivo Plural, e a indicação de um ilustrador para “O Mistério do Verde Nasce”. Apesar de ter alguns nomes em mente, indiquei um profissional cujo trabalho artístico conheço de perto. Trata-se do artista plástico Edmar Claudio, que também é escritor. Achei que o olhar sensível dele seria ideal para captar a essência do livro e dar vida aos personagens da história.
 
Quatro meses depois de ter conhecido Ana Cláudia, e um saldo de dois livros revisados, gostaria de expressar minha gratidão pela parceria de trabalho, e dizer que estou muito feliz por nossa amizade, pela confiança, o afeto e a admiração que a sustentam. Ela passou a ser uma inspiração, não apenas como escritora, ofício que desempenha com paixão e disciplina, mas sobretudo pela humildade, talvez a sua característica mais marcante, e seu desejo constante de aprender. Não é raro ouvi-la dizer que precisa estudar mais ou que deseja conhecer melhor a literatura do nosso estado, algo com que também me identifico. A propósito, está cursando o primeiro semestre do curso de Letras – Língua Portuguesa na UFRN.
 
Às vezes, tenho a impressão de que o escritor está sempre em dívida com a literatura, seja pelos livros que ainda não conseguiu ler, seja pelos que gostaria de escrever. É, amiga, na correria insana do nosso dia a dia, vamos tentando dar vazão a esse desejo sem fim, de ler e escrever, e fazendo da escrita nossa forma de ser/estar no mundo. É tão agradável a certeza de que, “Diante do amigo sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir”, como nos ensina Rubem Alves.
 

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