Andreia Braz

21/12/2020 13h27
 
Renata 
 
Saí de casa com planos de resolver três coisas importantes: deixar uma encomenda na casa de um familiar, auxiliar um amigo/cliente que não é muito afeito às tecnologias a enviar um trabalho e resolver umas coisas de ordem pessoal. Depois de um certo aborrecimento familiar e do cancelamento da primeira corrida pelo aplicativo, finalmente, consegui chegar à casa do meu amigo Pedro Neto. Depois de resolvermos as questões de trabalho, fomos para o Avarandado de Orfeu, como ele denomina sua varanda, onde conversamos um pouco e me senti mais leve. Falamos sobre música, literatura, enquanto degustávamos castanha de caju e um saboroso chocolate orgânico. Pedro e suas excentricidades... Enquanto isso, ele me mostrou novas composições, alguns epigramas e ainda assistimos alguns vídeos de apresentações suas com o Clube do Samba, projeto idealizado por Andiara Freitas, e outras mais.
 
Na hora de voltar para casa, fiquei feliz por saber que o motorista do aplicativo seria uma mulher, o que me faz sentir mais segura, especialmente à noite. Conversa vai, conversa vem, contei para Renata algumas situações desagradáveis vivenciadas com motoristas de aplicativo. Um deles parou o carro de madrugada porque eu havia sujado um dos tapetes do veículo sem querer, para sacudi-lo no meio da rua. Trazia comigo um vaso de barro com uma plantinha e, sem querer, o derrubei ao entrar no carro. Fiquei morrendo de medo de sermos assaltados. Pedi desculpas imediatamente, mas foi inútil. O mimo foi uma das lembranças da inesquecível festa de quinze anos de Sarah Medeiros, em 2019, filha da amiga-irmã Yanna Medeiros, produtora cultural que fez uma das festas mais lindas/emocionantes de que participei. Carlinhos Zens tocou uma canção feita especialmente para a aniversariante, “A canção de Sarah”, musicada por ele a partir de um poema de Diógenes da Cunha Lima, e o resultado não poderia ter sido outro. Interpretada por Thayanara, com sua voz potente e suave, a canção ganhou ainda mais força e beleza. Outro momento emocionante da festa foi a leitura de um texto escrito pela mãe da debutante. Impossível conter as lágrimas.
 
Voltemos às histórias sinistras com motoristas de aplicativo. Certa vez, quando voltava de um evento literário com duas amigas, o motorista estava visivelmente embriagado (ou sob efeito de alguma droga que não sabemos qual). O susto foi grande. E o pior de tudo era a velocidade do carro. Felizmente, tudo acabou bem. Descemos antes do destino final e solicitamos outro carro. Essa foi a segunda vez que fiz uma corrida com um motorista embriagado. Em outra ocasião, o cheiro de álcool impregnava o veículo e foi insuportável aguentar o percurso com aquele odor. Por sorte, era uma viagem curta. Além disso, senti medo de que ele pudesse desviar a rota. 
 
Depois de narrar essas situações inusitadas, para não dizer desagradáveis, a conversa tomou outro rumo e procurei saber um pouco mais sobre aquela moça de aspecto sofrido que ainda estava trabalhando após as dez da noite. Renata trabalha como motorista pela manhã e uma parte da noite. Não gosta de trabalhar até tarde da noite, mas às vezes faz isso para completar o apurado do dia. À tarde, trabalha numa lanchonete, preparando e assando salgados. Os filhos, três meninos de doze, nove e seis anos, ficam com a avó materna, enquanto Renata trabalha para garantir o sustento da família. A folga da segunda-feira é dedicada aos pequenos, que estão mais agitados/ansiosos nesses tempos de pandemia porque não podem ir à escola ou mesmo sair para brincar com os amigos na rua de casa. Ela também relata o aumento dos gastos com alimentação nesse período, afinal, eles estão o dia inteiro em casa e não podem contar com a merenda escolar. Enquanto o carro estava parado no sinal, ela me mostrou, orgulhosa, uma foto das crianças. “É por eles que estou aqui, eles são tudo para mim”, disse, emocionada. Renata foi casada por doze anos e está separada há dois. Pelo pouco que pude observar, ela foi vítima de violência doméstica, além de inúmeras traições. “Eu aguentei de tudo enquanto estive casada”, diz, relembrando as farras do ex-marido, que não se conforma com o fim do casamento e ainda insiste em retomar a relação.
 
Essa história de Renata é também a história de milhares de mulheres brasileiras/chefes de família que se desdobram para dar conta de filho(s), casa, trabalho, estudo (quando conseguem). Enquanto isso, alguns pais acham que estão fazendo muito porque passam um final de semana com os filhos. Isso quando têm esse compromisso. Muitos deles abandonam as crianças após a separação. Outros passam um dia com os filhos por semana e acham que é demais. É o caso de uma amiga que tem dois meninos e o pai vai buscá-los no sábado à noite e os devolve no domingo à tarde. Outro dia, os meninos confessaram que o pai não lhes dá a menor atenção (fica a maior parte do tempo no celular) e a madrasta havia batido neles algumas vezes. Minha amiga pediu a separação porque não aguentava mais o ciúme excessivo e as constantes traições. Hoje vive com um companheiro que a respeita e com quem divide as contas e as tarefas da casa. O ex-marido não participava de nenhuma atividade doméstica. Ela está muito feliz, mas ainda tem de aguentar a insistência do ex querendo reatar o relacionamento.
 
E quantas mulheres não vivem a mesma realidade daquela motorista. Tenho uma amiga que criou sozinha as três filhas e o pai só veio conhecer a mais nova quando a menina já estava com dez anos. Nunca pagou pensão e vive como se não tivesse filhos, curtindo a vida e farreando com os amigos. Enquanto isso, a mãe trabalha como faxineira e conta com ajuda da família para manter a casa. Duas filhas já fazem faculdade e trabalham. Eles se separaram na gravidez da segunda filha e ela acabou engravidando da terceira filha num certo reencontro. Quando soube da gravidez, ele disse que ela “engravidou porque quis”, que gostava de ter filho... E seguiu sua vida como se nada tivesse acontecido. 
 
Tenho outra amiga que ficou grávida após alguns meses de relacionamento com um rapaz que se dizia solteiro, mas tinha uma noiva. A canalhice dele atingiu o nível máximo: chegou a exigir que ela fizesse um exame de DNA ainda durante a gravidez. Uma humilhação sem tamanho. Hoje a criança tem dez anos e minha amiga o educa sozinha. Superorganizada financeiramente, trabalhou no ramo da hotelaria por uns dez anos e, com a ajuda de uma irmã, comprou seu apartamento e vive relativamente bem, mas se desdobrando para dar conta de tudo sozinha. Outro dia, ela estava relatando a rotina exaustiva de aulas remotas do garoto nesses tempos de isolamento social. Era a tarde inteira dedicada às aulas da criança, que já estava meio cansada desse modelo de ensino, imposto para evitar a propagação do vírus. O menino recebe muito afeto dos avós paternos, que moram próximo e sempre lhe dão toda a assistência. O pai cumpre seu papel: paga a pensão e passa alguns finais de semana com o garoto. Não faz mais que sua
obrigação. Deveria se retratar com a mãe do seu filho e pedir perdão por tê-la submetido àquela e outras humilhações durante a gravidez, que, aliás, foi responsabilidade de ambos. Mas parece que a mulher engravidou sozinha. Coisa que muitos esquecem ou fingem esquecer, atribuindo unicamente à mulher a responsabilidade por engravidar e muitas vezes cuidar sozinha da criança. Aliás, esse é outro tema revoltante. Deixemos para abordá-lo em outra crônica.
 
Ao chegar em casa, fiquei pensando naquela conversa com Renata e senti vontade de poder ajudá-la de alguma forma. Meu desejo era poder entregar um presente de Natal às crianças e passar uma tarde contando histórias para elas... Aliás, gostaria de fazer isso com muitas outras crianças. Sei o quanto o Natal é importante para elas. Será que um dia voltarei a reencontrá-la? Quem sabe. Afinal, como diz o mestre Vinicius, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
 

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