Ana Carolina Monte Procópio

31/12/2020 13h20

 

RESISTENTE ESPERANÇA
 
 
“Ano passado eu morri, 
mas esse ano eu não morro”
                                            Belchior
 
E hoje é o último dia desse ano impensável. Há um ano, como fazemos todos os anos, imaginávamos o que nos traria 2020, fazíamos projetos e criávamos expectativas.
 
E eis que veio a vida, em turbilhão como ela sempre faz e, sem consultar nossos planos nem os dos demais 7 bilhões de humanos deste planetinha azul, virou-nos de cabeça pra baixo. Um vírus microscópico, pequeno demais até no universo viral, tornou-se um gigante devastador. Trouxe medo, incerteza, isolamento, solidão, depressão, saudade, angústia, morte e muita dor. Tanta dor ao redor do mundo que não dá pra imaginar, só sentir a vibração pesada que este ano deixou como marca. 
2020 foi arrebatador. 
 
Nunca estivemos tão isolados, mas talvez nunca tenhamos buscado tanto e tão profundamente a união – a que foi possível –, a companhia – ainda que virtual –, o calor dos afetos verdadeiros. Quando a ausência passou a ser cotidiana, a presença mostrou sua dimensão. E nos demos conta do quanto somos quando pertencemos. Ser é pertencer? Não sei, só sei que faz muito mais sentido assim, com pertencimento. 
 
Nos dias intermináveis (bom, na verdade não são intermináveis, hoje é o último) de 2020, os fatos se desenrolaram diante de nossos olhos isolados trazendo uma sucessão de emoções: da raiva, asco, indignação, revolta, incredulidade, tristeza e assombro à invencível esperança, foi uma multiplicidade de sentimentos aparentemente impossíveis de serem vividos em tão pouco tempo e que certamente levaremos muito mais para processar.
 
Ao final desse ano louco e absolutamente inimaginável, a certeza de que o mergulho foi profundo, profundo demais para conseguirmos entender completamente no momento. As marcas são muitas e ainda não percebidas em todas as suas faces: política, social, econômica, humanitária, de gênero, educacional e tantas outras. O mundo pós-pandemia será diferente do que conhecíamos até o início deste ano.
 
No Brasil, a tragédia foi ainda maior porque, somada à ameaça real e presente da contaminação pelo vírus SARS-Cov-2 e suas nefastas conseqüências, viveu-se ainda o pesadelo do obscurantismo, da glorificação da ignorância, da negação da ciência, do deboche e do total desprezo para com as vidas dos semelhantes. Foram tantos e tão absurdos os episódios vividos, que é impossível comentá-los todos e nem é o intuito aqui, claro, mas seu sabor acre e enferrujado se fez e faz sentir, está vivo nas mentes atentas, especialmente a memória dos quase 200.000 brasileiros que perderam tristemente suas vidas.
 
Não bastasse esse passeio pelos caminhos trilhados na Idade Média, o feminicídio tornou-se prática corrente, uma reação quase “normalizada” à voz da mulher, ao seu querer, sua vontade, sua afirmação, sua existência em si. E uma dor imensa veio com cada notícia, cada foto, cada relato de cada irmã de gênero que perdeu sua vida para o machismo, o patriarcado, a força bruta e insana. O racismo voltou a desfilar toda a sua gana persecutória, seu desprezo arrogante, sua incapacidade de respeitar e conviver no espaço comum. Como retrocedemos!  Em termos civilizatórios, andamos neste ano, seguindo a estrada da última meia década, em velocidade alta para trás. O Brasil de hoje é violento, agressivo, intolerante, misógino, homofóbico, patriarcal, racista, atrasado e ignorante. Essa é a face predominante que temos apresentado ao mundo e a nós mesmos. 
 
Mas há mais do que isso, muito mais. Há bastante o que enxergar em meio ao caos deliberadamente provocado. Há vozes que se erguem poderosamente e reivindicam seu justo espaço. Há movimentos espontâneos surgidos da pura empatia e solidariedade social. Há arte da melhor qualidade sendo produzida, há amor em homens e mulheres de boa vontade. E que não sejam confundidos com cidadãos de bem. 
 
Adeus, 2020. Você foi importante demais, apesar de devastador. Venha, 2021. Vai nos encontrar forçosamente mais maduros, mais resilientes, mais profundos. E com a sempre resistente esperança.   
 
 

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