Daniel Costa

03/01/2021 00h17
 
DESAMOR
 
Ele entrou na sala de audiência dois minutos depois da hora marcada. Ajeitou o cabelo penteado em ondas e sentou-se empertigado pretendendo demonstrar segurança. A juíza iniciou os prolegômenos. Um leve tremor nas sobrancelhas de Carlos contrastava com a sua aparente tranquilidade. O nervosismo chegava nessas horas. “Filho da Puta”. Ele falou alto, pausadamente. Olhou para a juíza e explicou que era assim que vinha sendo chamado. Disse que ela lhe lançava palavrões dos piores e nem sequer pedia desculpas. A juíza pareceu interessada. As sobrancelhas de Carlos se aquietaram. 
 
Ele abriu um meio sorriso. Contou que ela agora chegava em casa quase todos os dias tarde da noite, muito além do horário combinado. Chegava na ponta dos pés qual uma bailarina. Nem um telefonema. Ele desconfiava que ela até vinha se aventurando na bebida. Por esses dias, havia chegado meio bambolê. Por certo achava que ele não notara os seus tropeços e o cheiro forte de cigarro entranhado na cabeleira castanha. 
 
A juíza interrompeu-o para reclamar do Tribunal, que não mandava ninguém para consertar o ar-condicionado quebrado desde janeiro.  Pediu um chá. Folheou o processo e viu fotografias de um carro com o para-brisa estilhaçado. Carlos se apressou em dizer que foi com uma pedra. Ela tinha inventado de catar jambo jogando pedras perto do carro do vizinho. Prejuízo de dois mil reais. Um mês sem se falarem. Castigo. Ela não tinha responsabilidade. Não guardava nem as próprias roupas. “Filho da puta”, ele repetiu, afirmando não existir outra saída. A juíza então mandou chamá-la.
 
Ela entrou acompanhada da mãe. Chegou toda tubinho num vestido azul de bolinhas, com rendas nas mangas e desenhos de corações perto do peito. Não foi possível ver a cor dos seus olhos, porque piscavam miúdos. O lacinho na cabeça balançava. Parecia ainda mais nova. A juíza parou de consumir o chá. Alisou o cabelo. Olhou para a promotora, que até então brincava no celular. Mandou que sentasse e explicou que o seu pai, parado na outra ponta da mesa, estava querendo anular o registro de paternidade. O que ela achava? Sim, concordava. Com uma condição: queria ser indenizada por todo o amor que não recebera.
 

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