Ana Carolina Monte Procópio

04/01/2021 16h31
 
 
SENSAÇÕES LITERÁRIAS
 
 
“Caminhos não há,
mas os pés na grama os inventarão.
Aqui se inicia uma viagem clara
rumo à encantação.”
                              Ferreira Gullar (Poema Português IV)
 
 
Cultivo desde muito pequena o hábito da leitura. Ainda entre os 6 e os 7 anos li a coleção completa dos livros de Monteiro Lobato ambientados no Sítio do Picapau Amarelo e de lá pra cá nunca deixei de ser uma leitora inveterada, com fases ou menos compulsivas, a depender da circunstância vivida, que determinou também as escolhas dos títulos, até por necessidade acadêmica e profissional. O fato é que os livros, em variadas temáticas, sempre fizeram parte ativa de minha vida.
 
Em 2020, por força do isolamento a que estivemos obrigados a seguir - por amor à própria vida e a de todos os demais seres -, o hábito da leitura disseminou-se e foram multiplicadas as conversas, os grupos em redes sociais, as lives sobre livros, autores, literatura de uma maneira geral. 
 
Também aumentei meu ritmo no que ano que se encerrou, com uma lista de obras admiráveis e autores lidos – novos e clássicos – que me abriram horizontes e me levaram numa conhecida viagem ao encantamento e a uma maior compreensão do que é humano.  
 
Neste ano, já concluí o primeiro livro – A Mulher Ruiva, do turco Orhan Pamuk, recebido em um clube de assinatura de livros no qual me inscrevi no ano passado.  Falarei sobre esse e outros dois que li recentemente e já os deixo como sugestões. Para não dar spoiler e não tirar a curiosidade e interesse de quem eventualmente queira conferir as obras, o que recomendo fortemente, não entrarei em detalhes, falarei apenas sobre a linha principal de cada um e o que mais me chamou a atenção.
 
No livro citado acima, há uma forte inspiração mitológica e de personagens envolvendo especialmente a relação entre pais e filhos. Evocando o mito de Édipo em mais de um aspecto e um mito persa antigo, de Rostam e Sohrab, vem à tona a questão da morte do pai pelo filho e do filho pelo pai, tema que permeia todo o livro como a culminância possível de processos não vividos plenamente. Diria que a paternidade é o tema central da obra. Mas há também outros aspectos dos mitos, que são percebidos com o desenrolar da história, de forma surpreendente e magistralmente construída. A discussão presente em todo o texto, e por isso o recurso aos mitos que tanto poder exercem sobre o personagem principal, versa sobre uma espécie de predestinação, de inevitabilidade do destino. Está alguém fadado a cumprir um script que lhe foi traçado? O que ressalta, porém, é que, se há alguma inevitabilidade, esta não é do destino, mas das próprias escolhas, por mais que possam parecer pequenas ou até involuntárias no momento em que se dão. Penso que uma das interpretações mais fortes que se pode extrair do texto é a inevitável relação entre os atos e suas conseqüências, deixando o destino em segundo plano em favor da autoderminação.  
 
Em O Deserto dos Tártaros, do italiano Dino Buzatti, há um universo de espera, resignação, busca de sentido. Numa narrativa atemporal e não localizada geograficamente, em um cenário impreciso, ocorre uma história surpreendente de busca de sentido, de dignidade, de honra até. Ao contrário de toda uma suposta trajetória normal a ser seguida na época em seu meio social, o protagonista sente o cumprimento do seu dever e a espera por uma culminância como o que lhe confere sentido e justifica suas escolhas. Livro muito nostálgico, até duro na conclusão a que nos faz chegar. Por um caminho inverso, partindo da resignação e paciência, fala sobre a experiência de viver e as alternativas que são oferecidas, ficando patente a brevidade em que devem ser feitas. Belíssima obra, que induz a profundas reflexões. Vita brevis...
 
Torto Arado, do brasileiríssimo Itamar Vieira Júnior, me trouxe talvez a melhor experiência literária de 2020. Um soco no estômago, um texto que flui com beleza e encorajamento a cada linha. Sensível e forte, delicado e corajoso como a vida que retrata no inóspito ambiente dos sertões do Brasil, nas circunstâncias de eterna escravidão dos negros e seus descendentes, o livro passa por gerações mostrando a luta pela sobrevivência, pela manutenção da cultura e costumes e, por fim, o esforço para a libertação efetiva e fruição de direitos, os quais são afirmados legalmente, mas nunca de fato consolidados. O enredo construído em torno das irmãs Bibiana e Belonísia apresenta início trágico e doloroso, que prende o leitor desde o começo. A estrutura narrativa, muito original, exige grande atenção para identificar em cada momento quem é o narrador, quem se apossa da voz para dar sua versão e expor seu ponto de vista. O livro fala de ciclos, repetições, saberes e disrupção também. Sem maniqueísmos, traz personagens muito bem construídos, com personalidades fortes e intensas como o meio em que vivem e mostra aspectos díspares como a força da resistência e também a fragilidade de comunidades ante o avanço de um novo modo de viver, mais globalizado, modernizado, que enfraquece a oralidade e a convivência comunitária como se dava até então, de maneira a mitigar as identidades. Obra atordoante que deixou, no fim, algo de Bacurau na sensação trazida.
 

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