Wellington Duarte

09/01/2021 10h04
 
Fuá na casa de Cabral: como uma nação pode voltar a ser civilizada?
 
 
Nenhum país do mundo se formou e ou se constituiu com rosas e boa vontade. Os processos históricos de construção invariavelmente foram sangrentos e opressores. Não imaginemos que os países nórdicos, hoje exemplos de civilização avançada, foram formados com belos e musculosos vikings e belas e formosas valquírias, cavalgando belos alazões e espalhando o amor e a sabedoria nórdica, com seus loiríssimos cabelos esvoaçantes; nem que a Europa se formou com povos pacíficos e dotados de uma inteligência superior. Dos rincões da Britânia ao extremo-oriente coreano, passando pela África, as civilizações nasceram regadas a sangue, suor e opressão. 
 
Feito o devido registro para que se perca, de uma vez por todas, essa mania de dizer que somos o que somos devido a nossa origem colonial, voltemos nosso olhar para os dias de hoje, onde o país, jovem historicamente falando, hoje está no purgatório da ignorância, prisioneiro de um sistema de ideias que levou o mundo à uma devassidão sangrenta, que matou mais de 60 milhões de pessoas e que cristalizou a ideia de “raça superior” e de que as disputas devem ser resolvidas ou no bofete ou na bala. 
 
Me refiro ao nosso fascismo tupiniquim, tão asqueroso quanto a sua fonte originária, vinda da civilizada Itália (sic) e que, ao longo dos anos 20 e 30 gerou regimes que hoje são reverenciados pela malta, antes prisioneira da civilização e que, depois de junho de 2013, saiu da toca e hoje está em todos os lugares, contaminando toda uma sociedade. 
Não. Esse não é um texto com pretensões estéticas de ser dirigido à nossa “brilhante” intelectualidade. Longe disso. O primeiro artigo de 2021 é um lamento. Nunca se deve comemorar a regressão de um processo civilizatório, como o que estamos passando, como algo a comemorar, especialmente quando a “conta” desse processo já deixou mais de 200 mil mortes na soleira da nossa porta.
 
A bestialidade da “revolta da vacina”, versão século XXI, é mais um exemplo das armadilhas que os processos sociais podem incutir nas sociedades. Não há garantias de que avanços tecnológicos tragam junto a evolução do pensamento social. Ter um presidente parlapatão, desqualificado, assumidamente ignorante, corrupto até a medula e que tem uma lista de crimes cometidos no cargo que seria cansativo listá-los, e mesmo assim ver esse ser disforme, representante do atraso, ainda ter boa parcela de pessoas que o apoiam e o reverenciam, revelam nossa doença social, fruto, é fato, de nossa formação histórica.
 
A banda pernambucana Mestre Ambrósio, formada nos anos 90 e que era um símbolo de como um processo civilizacional pode ser positivo ao forjar uma mescla de música nordestina típica, com rock, jazz e música árabe, lançou um disco em 1998 cujo título parece se enquadrar no BraZil de hoje: Fuá na Casa de CaBRal.
 
A terceira música do citado disco é a própria “Fuá na Casa de CaBRal” e se remete a uma visão que temos do nosso país, nascido mestiço e esculhambado, mas, ao mesmo tempo, essa visão de “nação mestiça”, tão ressaltada em prova por intelectuais como Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, tem, no seu interior, uma elite, ela mesma mestiça, racista e violenta, moldada por um conceito de divisão de classes, baseada na cor e na grana, que está entranhada no seu cerne. 
 
O fuá no BraZil de hoje é fruto de nossa própria desconfiança enquanto nação. Não temos heróis do povo nos livros formais de história. Nosso ensino se funda no sucesso social e nossa elite é uma das mais sem-vergonhas e ignorantes do mundo.
 
Somos um povo sem noção de nacionalidade e, por isso, somos tolerantes em copiar estilos de vida de outras sociedades e temos uma tendência quase natural de ser engabelados por narrativas estúpidas, como as do negacionismo terraplanista.
 
A estupidez da “revolta da vacina”; a imbecilidade da narrativa bolsonarista; a saudação à ignorância; o apego desmesurado à violência como forma de resolver as coisas; e o preconceito como ritual social, nos revela uma sociedade que brecou no tempo e que anda para trás.
 
Será necessário um forte movimento na sociedade para vencermos essa malta ignorante que hoje infesta as redes sociais. Um movimento pela vida.
 

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