Théo Alves

07/02/2021 10h13
 
Relatos selvagens
 
Quem assistiu a Relatos Selvagens, filme argentino de 2014, teve a chance de ver no cinema aquilo que há de mais humano entre os humanos de nossos tempos: selvajaria e violência desproporcionais. Dividido em seis pequenos contos, o fio condutor das reações violentas motivadas pelo desejo de vingança costura as histórias dando a elas a unidade necessária para um filme muito bem feito. Claro que o burilamento do cinema, direção e roteiro muito precisos, pontadas de um humor atrevido e ferino, dramaticidade e violência crua produzem um clima que pode nos fazer esquecer de que a brutalidade das histórias é algo como a vida real.
 
Basta olhar rapidamente as notícias que chegam até nós pelas redes sociais ou que aparecem entre as mais acessadas nos grandes portais da internet e veremos nossa lista de relatos selvagens estampadas logo de cara. É a violência que nos atrai, é o sadismo de que somos compostos que nos leva a algum regozijo diante das piores notícias e a cliques em busca desse prazer horroroso.
 
Por exemplo: como não se chocar com o marido que esfaqueou a esposa por causa de uma discussão durante a final da Copa Libertadores? O marido corintiano matou a mulher palmeirense, mãe de seus filhos gêmeos, depois da vitória do Palmeiras sobre o Santos. 
 
A lista segue cruel.
 
Bruno Covas, prefeito de São Paulo, dá continuidade ao que fazia seu anterior, João Dória, e manda instalar pedras sob os viadutos da cidade para impedir que pessoas sem-teto possam dormir nesses locais. O que parece algo como punir uma segunda vez a quem já não tem onde morar. E isso acontece ironicamente enquanto a Alemanha constrói cápsulas e as distribui nas ruas para que os desabrigados se protejam do frio. 
 
Para simbolizar a resistência necessária, foi preciso que o padre Júlio Lancellotti, de 72 anos, arregaçasse as mangas e se pusesse a quebrar as pedras a marretadas em claro gesto de desobediência civil que deveria inspirar a todos nós.
 
Em Campinas, um menino de onze anos foi encontrado acorrentado em um barril e seu pai é um dos principais suspeitos de torturar o garoto. Uma técnica de enfermagem em Alagoas foi flagrada fingindo aplicar uma dose da vacina contra a Covid 19 em uma idosa de 96 anos. Uma criança de cinco anos foi assassinada dentro de sua casa durante uma troca de tiros entre traficantes e a polícia militar em Niterói, Rio de Janeiro. Em Goiás, um lutador de muay thai foi flagrado através de uma câmera de segurança agredindo sua ex-mulher por tê-la encontrado com um novo namorado. O agressor se recusa a aceitar o fim do relacionamento de seis anos com a vítima, que conseguiu ter seu pedido de prisão preventiva para o criminoso acatado pela justiça esta semana.
 
Essas são breves amostras do que são os relatos selvagens brasileiros, retirados de uma rápida consulta aos grandes portais de notícias do país. E ainda se faz necessário dizer que estou excluindo dessa conta toda a necropolítica que temos visto por aqui, os absurdos e desmandos de políticos em relação às medidas de segurança contra a Covid 19 ou o descaso genocida na aquisição de vacinas. Nem menciono o derrame de dinheiro através de emendas parlamentares que foi destinado à compra do poder legislativo para poupar o presidente de um impeachment postergado, mas inevitável.
 
O filme Relatos Selvagens chegou a ficar três anos em cartaz nos cinemas de São Paulo (2014 a 2017), mas os nossos relatos selvagens infelizmente devem se estender a perderem-se de vista em nossas cidades, bairros, ruas, casas... cada um de nós testemunha diariamente a violência imparável das pessoas, humanas como nós, vítimas e algozes de um mundo cada vez mais absurdo e inaceitável que denuncia a falência clara da ideia mais perigosa e cruel já vista neste planeta: a humanidade.
 

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