Bia Crispim

12/02/2021 00h01
 
De volta à praça
 
Há quase um ano escrevi essa pequena narrativa e, nessa semana, gostaria de compartilhá-la com vocês. Não sei se é porque ainda não me resolvi com o medo, a tristeza e a ansiedade que essa pandemia causa a mim e a tantos de nós, ou porque tenho alimentado a esperança de que, de uma maneira ou outra, mais cedo ou mais tarde, voltaremos a viver sem esses sentimentos nefastos, os quais nos tornam tão indefesos diante de tudo.
 
Eis a narrativa. 
 
*
 Naquela encruzilhada, entre prédios antigos, está a praça, onde há tão pouco se via mesas com suas cadeiras ocupadas por risos, falatório, e brindes. Onde famílias jantavam, onde amigos celebravam um aniversário, um emprego novo. Onde algum solitário se afogava em suas mágoas ou amores naufragados. 
 
Na praça também havia crianças que brincavam com outras crianças e mulheres e homens que brincavam com crianças, como crianças. A vida era lúdica ali. Havia beijos, mãos dadas, artistas anônimos fazendo música, malabares, mágica. Mágico como o açúcar virando algodão doce, ou o carocinho do milho explodindo em pipoca. Tudo tinha vida, movimento, cheiro e sabor.
 
Havia gritos, gargalhadas explosivas, gestos, muitos gestos e pombos e velhinhos que nos bancos os alimentavam.
 
Agora não há pombos, não há velhos jogando migalhas. Não há mais migalhas, porque não há mais jantares ao ar livre. Não há mais crianças deixando suas pipocas caírem. Os pombos sabem... Não há mais como sobreviver ali. 
 
As crianças já não podem mais exercitar sua infância correndo na praça, nem os adultos podem ser crianças ao lado de suas crianças. A infância se fora. Os gestos tornaram-se contidos. Sem abraços, sem beijos, sem toque, as pessoas tornaram-se ilhas. E se reclusaram. 
 
A praça ficou deserta, as ruas ficaram desertas, os homens ficaram desertos. 
 
De suas ilhas os homens passaram a ver o mundo de forma diferente, descobriram o quão frágeis eram, são e sempre serão diante daquilo que lhes é desconhecido. 
Descobriram que cuidar do outro importa. Descobriram que a morte pode ser mais rápida, perversa e assustadora do que imaginavam.
 
Descobriram que não têm controle sobre nada.
 
Muitos dos velhinhos que alimentavam os pombos se foram. Algumas famílias não têm como sentar à mesa para comemorar, pois há uma ou duas cadeiras vazias. Há crianças que não voltarão àquela praça, nem pais, porque a praça não trará seus sorrisos e brincadeiras de volta. E isso dói!
 
O malabarista deu sua última pirueta. A música já não é mais executada, pois o instrumento jaz na calçada. E algum mágico, sumiu em sua cartola.
 
A praça, as ruas, as cidades, as pessoas... Encheram-se de vazios. 
 
Mas eis que, dentro dessa cena deserta um homem-ilha se move, de branco, sozinho, com um crucifixo ao peito, olhando para o nada, mas rezando para que toda a vida volte pr’ali.
 
Só ele e sua fé.
 
Fé que preenche os vazios de esperança. Fé que nos faz acreditar que há um Deus capaz de um dia, nos devolver os risos, os brindes, os jantares, as crianças e os pombos na praça, porque teremos a chance de ficarmos velhos e irmos pra lá, sentar nos bancos e alimentar os pombos que voltaram.
 
Parelhas, 19/03/2020

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