Andreia Braz

22/02/2021 12h06
 
Dos conselhos inúteis
 
 
Quem leu a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude natural do homem.
                                                                                                                                                     Oscar Wilde
 
Outro dia estava conversando com uma amiga sobre a felicidade de ter conhecido um cara muito interessante, e até cogitei a possibilidade de reencontrá-lo, mesmo que remota, pois ele mora em Belo Horizonte e está de férias em Natal. Ela jogou um balde de água fria na minha expectativa, entre outras coisas, disse que eu não deveria tomar a atitude de convidá-lo para sair, pois “isso não é coisa de mulher”, “homem não gosta de mulher fácil”; e me fez refletir sobre outras questões mais profundas quando o assunto é o machismo nosso de cada dia, infelizmente reproduzido também por nós mulheres, sem que muitas vezes nos demos conta disso. Afinal, são séculos e séculos de opressão e apagamento quando o assunto é o desejo feminino e temas afins. Não é fácil desconstruir tudo isso de uma hora para outra, mas não podemos calar diante de situações como essa. Temos um longo e árduo caminho pela frente.
 
Após nos despedirmos, fiquei me perguntando o que seria uma “mulher fácil”. Por acaso seria uma mulher livre? Uma mulher que faz o que está a fim sem se preocupar com o julgamento alheio? Uma mulher livre para amar e ser feliz? Uma mulher que vive plena e satisfatoriamente sua sexualidade? Uma mulher que não dá a mínima para esses estereótipos que nos aprisionaram e continuam aprisionando quem não ousa gritar por sua liberdade? 
 
Essa minha amiga esqueceu que estamos no século XXI e que, apesar da luta do movimento feminista, de algumas conquistas/avanços em termos legais, nós mulheres continuamos sendo vítimas da opressão machista, de relações abusivas e de todo tipo de violência, sobretudo no âmbito doméstico, onde a mulher deveria estar protegida. 
Aliás, os índices de violência doméstica aumentaram assustadoramente durante a pandemia do novo coronavírus. Muitas mulheres passaram a viver em tempo integral com seus agressores. Violência e opressão que muitas vezes resulta em feminicídio, a culminância de relações abusivas que começam de forma sutil, com o controle da roupa, das amizades, das redes sociais/telefone, e depois descambam para a violência verbal, física, sexual, psicológica, patrimonial. As crianças e adolescentes vítimas de exploração e violência sexual vivenciam o mesmo dilema. Com as escolas e creches fechadas, as marcas dessa violência ficam escondidas e os meninos e meninas que sofrem esse tipo de abuso ficam ainda mais desprotegidos e vulneráveis. Os agressores geralmente são os próprios familiares ou pessoas de confiança da família. Basta lembrar, por exemplo, o caso da nadadora Joanna Maranhão, que foi molestada por seu antigo treinador aos nove anos de idade. Depois de alguns anos de terapia e do enfrentamento das crises de ansiedade e pânico (e duas tentativas de suicídio), ela decidiu denunciar o caso à polícia, aos 19 anos. A denúncia do caso inspirou a Lei Joanna Maranhão, sancionada em 2012, que altera o Código Penal para que a contagem do prazo de prescrição nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes comece a ser contado a partir da data em que a vítima completar 18 anos de idade, a menos que a ação penal tenha já iniciado em data anterior.
 
Voltando ao tema das relações abusivas e da violência contra a mulher. O sentimento de posse em relação ao corpo da mulher é uma das razões que levam o homem a achar que ela não tem o direito de romper uma relação abusiva e seguir sua vida, podendo, inclusive, escolher outro companheiro/a. É desse tipo de situação que precisamos nos libertar, é contra isso que precisamos lutar incansavelmente. E não contra a liberdade sexual da mulher, que continua sendo vítima de comentários machistas, inclusive de outras mulheres, quando ousa ser livre. É esse tipo de visão que precisamos desconstruir, refletindo sobre nossa postura em relação a outras mulheres, a quem muitas vezes julgamos por suas atitudes, sua fala e, pasmem, até por suas roupas. 
 
E por falar em julgamento, voltemos aos conselhos inúteis de minha amiga, que certamente se considera uma autoridade no assunto e deve achar um absurdo uma mulher ir pra cama com um homem que acaba de conhecer, por exemplo, ou mesmo aquelas que se aventuram nos sites de relacionamento em busca de sexo casual. Nesse caso, não custa lembrar, o homem não está fazendo nada de errado, apenas dando vazão aos seus desejos, como se a mulher também não tivesse desejos (e poder de escolha, principalmente) e não tivesse o direito de realizá-los quando e com quem quiser. Nesse caso, ela é taxada por muitos adjetivos que não cabe reproduzir neste espaço. Que diferença faz transar com uma pessoa um dia, uma semana ou um mês depois de tê-la conhecido? Isso diz alguma coisa sobre a personalidade de quem se entrega ao desejo e vive a sua vida como lhe convém? Isso diz alguma coisa sobre a dignidade dessa pessoa ou a diminui profissionalmente? Sonho com o dia em que assuntos de foro íntimo serão de fato íntimos e não servirão de subterfúgio para julgar e/ou desrespeitar as mulheres.
 
Eu e minha mania de tergiversar. Perdão, caro leitor, mas não poderia deixar de falar desse assunto tão importante. Prometo que vou contar o resto da conversa nada empolgante com a amiga com quem partilhei meu encantamento por um certo filósofo que conheci num café. Eu toda feliz, me sentido superbonita, atraente, desejada... Esperava outra atitude dela. Bem, voltemos ao discurso moralista/preconceituoso de minha distinta amiga. Quando terminei de falar da minha alegria e da renovação de ânimo que foi conhecer aquele homem de forma tão inusitada e do desejo de reencontrá-lo, de uma tacada só, ela disparou: “Homem não gosta de mulher fácil”. Após essa frase clássica, e abominável, vieram outras igualmente ridículas e desnecessárias: “Não vá atrás dele”; “Deixe que ele fale com você”; “Não mande mensagem”; “Não telefone”...
 
Por que eu, uma mulher livre, prestes a fazer 40 anos, não posso ser quem sou e fazer o que desejo, se estou a fim de um cara? Qual o problema em fazer o que quero se isso me deixa feliz? Ainda bem que eu nunca escutei esse tipo de conselho e sempre segui os caminhos do meu coração. E não me arrependo de nada até aqui. 
 
Apesar do aborrecimento com os conselhos inúteis de minha amiga, aquela conversa teve algo de positivo, me fez refletir sobre as questões abordadas aqui e reforçou a importância de um novo modelo de educação de meninos e meninas, uma educação baseada no respeito às diferenças e, sobretudo, no direito à liberdade de ser e de amar a quem quiser. Uma educação que possa nos ajudar a descontruir ideias como essa de que uma mulher é “fácil” ou “difícil” a depender da forma como ela se relaciona com os homens e o tempo que leva para transar com eles, sendo que para estes os adjetivos são sempre elogiosos quando assunto é “pegar mulher”. Eles podem tudo. Mas uma mulher livre é chamada de “puta”. Uma educação que possa combater o machismo e toda forma de opressão contra a mulher. Uma educação que pregue o respeito a homens e mulheres e suas escolhas quando o assunto é relação amorosa, sexo... 
 
Uma das formas de incutir esses ideais de liberdade e respeito às diferenças é a leitura de algumas biografias e o conhecimento de algumas personagens importantes da educação, literatura, música, psicanálise, artes plásticas, dramaturgia, cinema... E o que não faltam são exemplos de mulheres que, apesar de todas as imposições de sua época, deixaram um grande legado para as futuras gerações. Afinal, “lugar de mulher é onde ela quiser”. 
 
Para citar alguns exemplos, de ontem e de hoje, deixo estes nomes: Nísia Floresta, Anita Malfatti, Frida Kahlo, Auta de Souza, Myriam Coeli, Zila Mamede, Palmyra Wanderley, Chiquinha Gonzaga, Olga Benario Prestes, Carolina Wanderley, Pagu, Tarsila do Amaral, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Cora Coralina, Lélia Gonzalez, Nise da Silveira, Rachel de Queiroz, Dona Militana, Maria Lêda Maciel, Hebe Camargo, Leilane Assunção, Conceição Evaristo, Elza Soares, Teresa Cristina, Rita Lee, Glorinha Oliveira, Titina Medeiros, Krystal, Lya Luft, Rizolete Fernandes, Dorinha Costa, Ceiça Fraga, Ana Cláudia Trigueiro, Diulinda Garcia, Lúcia Eneida Ferreira, Ana de Santana, Jania Souza, Tereza Custódio, Araceli Sobreira, Marize Castro, Penha Casado, Salizete Freire, Anchella Monte, Carmen Vasconcelos, Maria Emília Wanderley, Gilvânia Machado, Ivaíta Souza, Leocy Saraiva, Jeanne Araújo, Iara Carvalho, Jeovânia P., Angélica Vitalino, Juscely Confessor, Bia Crispim, Cellina Muniz, Gessyca Santos, Andiara Freitas, Rebecka de França, Ana Paula Campos, Alice Carvalho, Emilly Mel Fernandes, Regina Azevedo. 
 
Afinal, como diz a monja e escritora norte-americana Joan Don Chittister, “[…] quando uma mulher está consciente de como se tece o mundo ao seu redor, obriga-se a dizer sua parte de verdade em benefício de toda mulher que nasça no futuro”.
 

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