Théo Alves

07/03/2021 00h08
 
 
Conversas de chuva com minha avó
 
 
Quando chove, penso imediatamente em minha avó. Ponho a cadeira de balanço ao lado da sua e vencemos um tanto de chuva em silêncio, como um pequeno monge apressado diante do próprio Buda em toda a sua iluminação.
 
A chuva arrefece e ela me pergunta dos netos. Conto-lhe que estão bem, apesar dos pesares deste mundo pesaroso e rimos. Digo a ela como eles têm um humor peculiar e fazem piadas inesperadas com algum tom de ranzinzice. “Puxaram à senhora” e ela ri me dando uma resposta atravessada que me põe a rir também. Digo que as crianças têm a teimosia dos Alves, ao que ela rebate explicando que não é teimosa: “teimoso é quem teima comigo”. Assim me dou por vencido e rimos mais uma vez.
 
A chuva volta a cair em bátegas sobre o telhado à nossa frente. Eu gosto da palavra “bátegas”, mas ela não a conhece, nunca precisou dessa palavra que é só perfumaria. As mulheres acodem às bicas com baldes para juntarem a água da chuva. Minha avó as repreende explicando “que é água da primeira chuva, não bebam isso”. Nenhuma das mulheres a escuta e seguem trocando baldes para encher os potes e tonéis de plástico.
 
A chuva continua forte e minha avó faz silêncio outra vez. Não me conta sobre os filhos homens que morreram ainda na primeira infância nem as histórias dos viajantes que tomavam as noites na casa de Papai Tomás, em cuja casa trabalhou por tantos anos. 
 
Ela diz quando a chuva vai parar e está certa. Conhece o céu e o lugar de cada relâmpago, o tempo dos trovões. Conversa pouco entre um estrondo e outro porque chover exige nossa solenidade. Exige a casa em seu redor, capaz de adivinhar o tempo e de controlar a fúria da água. 
 
Permaneço sentado à cadeira de balanço, mas imóvel. Olho para ela que chama as filhas por nomes muito distintos até calhar o nome certo à pessoa certa. Evita meu nome e me chama apenas de “meu filho”, o que me é muito mais que suficiente. Diz algo sobre seus pais, cuja memória demora a apagar seus rostos. E quase chora ao lembrar “mamãe”, que eu não cheguei a conhecer.
 
Volto a dizer que os netos se parecem com ela, ao que responde sorrindo “não venha me culpar”. Sorrio também e voltamos à chuva. Há tão pouco a ser dito quando tudo é importante. Por isso os silêncios são eloquentes e contam todas as histórias necessárias. 
 
Uma frase curta relembra aventuras de seus cães cujos nomes são sempre curiosos, anedóticos. As flores de algodão e as grandes panelas de canjica estão entre seus assuntos preferidos. Sempre entrecortados. Frases quase soltas que corro para alinhavar em sua máquina de costura, de pedal de roda e que tantas vezes me serviu como volante ou leme para as brincadeiras de criança.
 
A chuva ameaça parar.
 
E para. Cumpre seu destino: traz alguma esperança pouca, mas suficiente para a nossa ilusão inevitável de que a vida volta a ser possível por aqui. Da minha cadeira de balanço, ponho a mão sobre a cadeira de minha avó, a cadeira imóvel e vazia. 
 
Como eu gostaria de que ela ainda estivesse aqui.
 

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