Eliade Pimentel

25/03/2021 00h03
 
A magia da cozinha afetiva
 
 
Sempre que faço carne moída, lembro da minha irmã Eliete, que partiu recentemente. Eu era bem pequena e fui guiada por ela em meus primeiros passos na cozinha. Na primeira vez que eu fiz, lembro que depois de pronta ela experimentou, fez uma cara não muito boa e em seguida amassou um dente de alho no pilão, depois o refogou numa frigideira com um tiquinho de óleo, jogou sobre a carne e disse: o que dá gosto é o alho e a cebola bem refogadinhos. Naquele momento, não só aprendi a fazer a carne, como também a salvar qualquer prato salgado que ficasse meio sem graça. Tasca alho frito que dá certo!
 
Esses dias, comentei isso com minha sobrinha mais velha e ela disse da coincidência de ter feito esse prato no período em que sua mãe estava internada. “Lara não sabia fazer a carne de mainha e eu a ensinei”, disse-me. Parecia a providência divina confortando aquelas moças de que elas não mais teriam a sua mestre-cuca-mor para ensinar. Quando me referi aos refogados, Raíra riu e respondeu: “sei muito bem o que é isso”. Ela, que é também é chef de cozinha feito a mãe, referia-se ao capricho e ao perfeccionismo de sua genitora. Achei tudo muito lindo, pois o destino brincou com nossos sentimentos através de um prato tão tradicional. 
 
A carne moída refogadinha é versátil para tantas coisas, desde o cachorro-quente das festinhas, ao clássico recheio para pastel. Acrescida de molho de tomate, aquece o prato do almoço ou do jantar e se transforma no maravilhoso macarrão à bolonhesa. Depois da conversa com a sobrinha, fiquei matutando sobre o quanto as memórias afetivas gastronômicas delineiam nosso jeito de ser e podem afetar positivamente a nossa vida profissional. Nas mãos da minha querida e finada irmã, que junto ao marido Nilson construiu um dos melhores buffets do Rio Grande do Norte, não só a carne moída, mas tantos outros pratos representativos da história dela ganharam a sofisticação que uma festa merece.  
 
É o caso do escondidinho de macaxeira, das tarteletes que inventávamos na adolescência, da quiche que aprendemos em revistas e as adaptamos cada qual ao nosso jeito, dos empadões de frango, do bolo de chocolate com brigadeiro e granulado, do bolo de macaxeira, e de tantas outras delícias que foram sendo incorporadas ao seu cardápio, como as saladas de folhas, os gratinados de bacalhau, o vatapá servido na quenga de coco e os tão ricos pratos à base de frutos do mar. Quem não gosta de camarão, de lagosta, de mexilhões, lulas e polvos?
 
E quando falei da afetividade que emana da cozinha, minha sobrinha lembrou do cuscuz com leite e ovo, que ela comia na casa de sua avó paterna D. Edeni. Na sua infância, era o melhor de todos os jantares. Talvez até hoje ela o faça e conte essa história para sua filhinha. E assim, todos nós somos feitos de memórias afetivas gastronômicas. Algumas boas, outras nem tanto: minha irmã mais nova, Elilde, sempre foi meio enjoada para comer e um dia ela fez uma declaração bombástica: eu não gosto de cozido. Como assim, mas você comia! 
 
Quando todos os queixos caídos ao redor da mesa voltaram aos seus devidos lugares, ela se explicou: quando a mãe fazia aquele panelão de cozido, lotado de legumes e verduras, não havia outra opção a não ser comer. No nosso tempo, meu povo, não tinha a opção de “faz um miojinho” para a criança que não gosta disso ou daquilo. Nós matávamos a fome com o que era servido, gostando ou não do prato. Vou nem dizer as vezes em que comi fígado acebolado. Não vou dizer que tenho trauma, mas se é para dizer não, hoje eu digo: passo. 
 
E nessa de cozinha afetiva, costumo usar também os ensinamentos de D. Mis, mãe de duas amigas e um amigo, e eventual avó postiça de Alice. Ela me ensinou a colocar folha de louro e azeitonas picadas na carne moída, pequenos truques que agregam um sabor incrível ao que já era maravilhoso, e também me disse que coloca pedaços de jerimum (ou abóbora) no início do cozimento da sopa de carne, porque o vegetal cozinha rapidamente e vai engrossando o caldo. Ah, e por falar em sopas, jamais me esquecerei das sopas de legumes que minha amiga Elis Araújo fazia para sua avó. Vez por outra eu ia para sua casa, geralmente fim de tarde, e pegava carona no jantar daquela senhorinha tão bem tratada pela neta. 
 
Hoje em dia, as pessoas têm sido diagnosticadas com mais frequência com intolerâncias alimentares ou alergias, mas as comidas afetivas continuam tendo seu lugar de destaque, mesmo em receitas adaptadas, sem glúten, sem lactose, mas elaboradas com muito afeto. Na minha cozinha, por exemplo, tenho diversas receitas de bolo de banana com canela, e a maioria das pessoas que comem qualquer que seja a edição do meu bolo lembra de casa, da mãe, da vó, da tia, da vizinha. 
 
Esse é um tema que rende livros e sempre será recorrente em minhas crônicas. Vou encerrar lembrando um fato curioso que a cada dia tenho mais certeza, sobre a semelhança de nossa comida afetiva com a de outros países. Na maioria das vezes, a gente não tem nem ideia da similaridade, como foi o caso da primeira vez em que viajei a São Paulo e fiquei enlouquecida quando vi o quiosque de Donuts, na rodoviária do Tietê. Se por um lado fiquei meio frustrada porque tinha gosto de sonho de padaria, por outro fiquei feliz porque percebi que era algo tão acessível em qualquer esquina do meu país.
 
Outra coisa foi quando tentei reproduzir aquela famosa panqueca que a gente vê nos filmes, que compõe o tradicional american liferel. Segui à risca uma receita e quase morri de rir sozinha, quando me toquei que parecia um chapéu de couro, aqueles bolinhos achatados de farinha de trigo, feitos pelas donas de casa do Nordeste quando lhes falta opção para o lanche das crianças. As melhores coisas da vida realmente são as mais simples, como é o caso das comidinhas de casa. Quando eu bato leite com chocolate e gelo no liquidificador, como minha mãe fazia, parece que volto automaticamente ao meu tempo de criança. Ô saudade que bate! 
 
 

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