Andreia Braz

29/03/2021 11h27
 
Uma dose de esperança
 
Foram quase três décadas longe de minha mãe biológica. Eu tinha dez anos quando nos separamos e depois disso não foi possível continuar ao lado dela quando voltou de uma viagem a São Paulo, onde fora trabalhar como empregada doméstica durante seis meses. Eu e minha irmã mais nova, Cristina, na época com cinco anos, ficamos sob os cuidados de duas pessoas de sua confiança. Apesar de ser uma mulher trabalhadora de boa índole, era alcóolatra e por isso o melhor seria ficar com a família do meu pai naquele momento, que me acolheu e me deu condições de ter uma vida melhor. Foi a primeira decisão importante que tomei na vida. 
 
Quase trinta anos se passaram desde aquela dolorosa separação. Nosso reencontro aconteceu em fevereiro de 2020, poucos dias antes do início da pandemia. Quando fui visitá-la, no feriado de carnaval, fiz planos de voltar no início do segundo semestre e, quem sabe, até no final do ano. Quantos planos eu fiz naquela viagem! Queria voltar o mais rápido para o sítio! Queria sentir novamente a paz daquele lugar e o aconchego de sua presença. É tão bom esse retorno a nossas origens. Queria escutá-la dizer que precisava acordar cedo para “barrer o terreiro” e cuidar de suas plantinhas. Queria saborear novamente aquele cuscuz com galinha guisada. Queria degustar aquele cuscuz com leite que somente ela sabe fazer. Um retorno à infância. Porto seguro. Queria assistir novelas em sua companhia e ficar falando dos artistas que a gente gosta. 
 
Prometi a mim mesma que a visitaria ao menos duas vezes por ano. Mas a vida não é exatamente como planejamos e o imponderável se interpôs no meio desse sonho. Tantos anos longe de minha mãe e quando finalmente nos reencontramos, mais uma separação. Todas as vezes em que nos falamos  por telefone, invariavelmente, ela me pergunta: “Quando é que você vem, Deinha?”. É de cortar o coração quando escuto essa frase, mas minha resposta é sempre a mesma: “Assim que for possível, mãe, quando a senhora for vacinada etc.”.
 
E não é que agora um fio de esperança recaiu sobre mim. Hoje à tarde, quando estava me preparando para fazer a sesta, recebo duas fotos que me enchem de alegria e emoção: minha mãe recebendo a primeira dose da vacina contra a Covid-19. As imagens foram enviadas por dona Cida, a amiga que cuida dela há quase uma década e a resgatou de uma vida de sofrimento e privações. Não pude conter as lágrimas e um choro feliz molhou minha face e aqueceu meu coração. É uma emoção inexplicável saber que em pouco tempo ela estará imunizada, caso seja acometida pelo vírus, a doença certamente não evoluirá para seu estado mais grave. Além disso, a vacina significa que poderemos nos encontrar com certa segurança quando for possível. 
 
E no meio de toda aquela emoção, lembrei, com profunda tristeza, dos milhares de filhos que não tiveram essa oportunidade porque seus pais não chegaram a se vacinar. Uma dessas pessoas foi minha amiga Érika Karla, assistente social do Hospital Giselda Trigueiro e da Maternidade Escola Januário Cicco e profissional devotada ao ofício, que perdeu a mãe, dona Luzinete, 74 anos, para essa doença que parou o mundo e já vitimou milhares de pessoas. A alegria e a força de dona Luzinete jamais serão esquecidas. Aliás, ela foi homenageada pelo Inumeráveis, memorial dedicado às vítimas da Covid-19 no Brasil que publica diariamente breves relatos biográficos dessas pessoas. O intuito é, também, mostrar algo que não podemos esquecer: não são números. 
 
Lembrei, também, do trabalho humanizado das equipes de saúde que estão realizando essa campanha de vacinação Brasil afora. Minha mãe tem 74 anos e mora na zona rural de Pernambuco. Ela foi vacinada no sítio onde mora. Essa dose de esperança me fez pensar que nosso encontro, com todos os cuidados e o distanciamento necessário, pode está mais perto de acontecer. Quem sabe eu possa visitá-la no final do ano. Um afago para o meu coração e um pouco de alento e esperança nesses dias incertos que vivemos desde que foi decretada a pandemia da Covid-19 em nosso país, que já vitimou mais de 300 mil pessoas. Aliás, vivemos o pior momento da pandemia. O número de contaminados cresce assustadoramente e o sistema de saúde está à beira de um colapso. A vacina, o distanciamento social, o uso de máscara e as medidas de higiene são as únicas armas que temos. E, claro, não podemos esquecer da responsabilidade do poder público no que diz respeito à proteção e à garantia de direitos básicos, especialmente, daquelas pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica. Afinal, a pandemia acentuou as desigualdades sociais no Brasil.
 
Voltando à vacinação de minha mãe. Um filme passou pela minha cabeça quando recebi aquelas fotos e a notícia de que minha mãe está vacinada. Lembrei da viagem, da alegria do nosso reencontro, das primeiras fotos tiradas na janela de sua casinha, da simplicidade do seu lar, das nossas conversas, dos almoços partilhados com a vizinhança, das histórias que escutei sobre ela e das narrativas que me contou sobre sua vida (que memória fantástica ela tem!). Lembrei da nossa ida à feira de Jucati e da alegria de vivenciar aquele momento tão simples em sua companhia, de poder presenteá-la com uma outra coisa que a agradava. Das conversas com seus conhecidos ao longo do nosso passeio. A volta pra casa de mototáxi... Na bagagem, muitas lembranças, afetos, saudade e um quilo de farinha de mandioca produzida na região. 
 
Senti medo de perdê-la quando tudo isso começou, e chorei muitas vezes com essa angústia e a possibilidade de nunca mais poder encontrá-la. Confesso que também me senti culpada por ter demorado tanto a procurá-la. Senti medo de não poder visitá-la outras vezes, de não poder passear com ela em Garanhuns, trazê-la para Natal... Aliás, quero apresentá-la a alguns amigos que ficaram curiosos por conhecê-la depois de saber da nossa história: Ceiça Fraga, Cláudio Everton, Fátima Soares, Mário Sérgio, Monalisa Medeiros. São muitas e complexas as sensações que nos invadem em um momento como esse. Também tive medo de perder mãe de criação, Terezinha Cavalcanti, 78 anos, que é diabética. A mulher que me acolheu, me educou e, principalmente, permitiu que eu pudesse estudar e ter a vida que tenho hoje. Lembro com carinho das comidas que ela preparava quando eu ia pra escola quando a gente morava em Garanhuns. Um dos meus pratos prediletos era cuscuz com banana assada. Jamais poderei agradecer o suficiente tudo que ela fez por mim. Isso sem falar nos seus ensinamentos e no seu exemplo de vida. Mulher de uma fé inabalável, tia Terezinha, como a chamo, é uma mulher caridosa e resiliente. Um exemplo de afeto, compaixão e bondade. Uma mulher que está sempre disposta a ajudar o próximo. Ela nos lembra, com suas atitudes, que sempre é possível ajudar, que não devemos ser indiferentes ao sofrimento alheio. Felizmente, as duas já tomaram a primeira dose da vacina. Pensando bem, me sinto privilegiada por ter duas mães e espero poder usufruir da presença/amor delas por muito tempo.
 
Outros registros de idosos vacinados também me arrancaram lágrimas e me fizeram acreditar em dias melhores. Dona Maria José e seu Zé Lucena, pais da minha amiga-irmã Ana Cláudia Trigueiro, que “me adotaram” como filha caçula, foram vacinados há poucos dias. Meus pais do coração, como costumamos dizer. Não vejo a hora de poder abraçá-los e enchê-los de muito carinho! Que saudade dos cafés e das conversas sem fim na varanda de Ana Cláudia! Que saudade daquele bolo de banana que ela faz! Que saudade das piadas e causos de Mário César! E também dos seus quitutes, sempre preparados com muito amor. A cada encontro é uma novidade gastronômica. Fico com água na boca só de lembrar dos antepastos, das brusquetas e do queijo caseiro que ele faz. A vacinação de Socorro Tavares, minha querida professora de Geografia, foi outro motivo de contentamento. Isso sem falar no meu amigo José de Castro, que agora terá ainda mais inspiração para escrever e recitar seus poemas. Precisamos tanto da sua leveza e da sua poesia, meu amigo! 
 
É grande a lista de momentos comoventes, sobretudo porque estamos com as emoções à flor da pele, em meio a tantos desafios, incertezas e perdas. Um deles foi a vacinação de Milton Nascimento, a profissional que aplica o imunizante está visivelmente emocionada por está diante de Bituca e faz questão de externar sua alegria por vivenciar aquele momento. Ao fundo, toca “Coração de Estudante”. Gilberto Gil foi outro que emocionou os fãs no dia de sua vacinação. No vídeo postado em seu Instagram, ele aparece sendo vacinado ao som de um hino, aliás, uma mensagem impositiva no contexto atual: “Andar com fé eu vou”. “Queremos viver confiantes no futuro”, escreveu o músico. O pai do ator Bruno Garcia deu um exemplo de simpatia e gratidão ao presentear a moça que aplicou sua vacina com um artesanato em couro feito por ele. Agradece pela esperança de poder continuar seu trabalho. “Painho emocionou muita gente com sua alegria repleta de afeto e empatia”, disse o ator em seu Instagram.
 
E no meio de tudo isso, não podemos deixar de pensar, também, na agonia do nosso povo e no desejo de vacinação para todos. Além disso, é preciso, mais do que nunca, reforçar a importância da ciência e do SUS, sistema de saúde que proporciona acesso universal, gratuito e integral a toda população do país. A busca da informação correta e o combate às fake news também fazem parte dessa luta que travamos diariamente contra a insanidade/alienação em que estão mergulhados milhares de brasileiros, que muitas vezes colocam a própria vida em risco por não acreditarem, por exemplo, nas medidas de prevenção à Covid-19, na gravidade da doença, na vacinação etc., e/ou acreditarem em medicamentos sem eficácia comprovada. 
 
Voltemos às boas notícias. Júnior Limeira, amigo querido cujos pais foram vacinados em Natal, escreveu um texto emocionado em suas redes sociais para partilhar com os amigos sua alegria. Eis um trecho de seu depoimento: “Um verdadeiro oásis em meio a esse deserto de incertezas. Grato ao universo por podermos estar vivendo essa dádiva que infelizmente tantas milhares de famílias não puderam viver”.
 
Sigamos, com os cuidados necessários, o distanciamento social (para os que podem, claro), e a canção de Gil no coração: “Andá com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá”.
 

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