Théo Alves

11/04/2021 07h23
 
O Brasil em duas manchetes de jornal
 
Sempre fomos um Brasil de contrastes e de tentativas desastradas para amenizá-los com alguma acomodação, um ajeitado de cá e outro de lá, tudo para manter regalias de quem as tinha em troca de algumas migalhas para quem tinha quase nada. Os exemplos estão espalhados ao longo de toda a nossa história, como é o caso das leis ridículas que apontavam para uma abolição fajuta dos escravos (como é o caso da Lei do Ventre Livre e do Sexagenário) ou mesmo nossa transição da Ditadura Militar para um governo civil meio desajeitado.
 
Esses contrastes apareceram em duas notícias que pipocaram em nosso noticiário no meio da semana. Uma: pela primeira vez em 17 anos, assistimos ao crescimento da fome e mais da metade dos brasileiros não tem garantia de alimentação. Outra: o Brasil ganha 11 novos bilionários no ano da pandemia.
 
Que o capitalismo tem enormes defeitos e crueldades, que passam sobretudo pelo massacre do trabalhador para o crescimento de instituições financeiras, ninguém duvida. Que as injustiças sociais e econômicas se acentuam ainda mais em um momento de crise absoluta como a da pandemia de Covid 19, ninguém duvida. E esses aspectos, que já deveriam ser naturalmente inaceitáveis, ganham traços de ironia e crueldade quando noticiados no mesmo dia.
 
Onze novos bilionários são pouco mais de uma dezena de pessoas incapazes de gastar todo o dinheiro que têm em uma única vida, mesmo que parassem de arrecadar qualquer capital a partir de agora. O crescimento da fome, pela primeira vez em 17 anos (17 parece ser o número mágico dessa equação tenebrosa), significa dizer que 19 milhões de brasileiros não têm o que comer. 
 
E, convenhamos, não há mérito que justifique ou que minimamente torne aceitáveis esses números macabros. A verdade é que nenhum de nós, especialmente esses 11 novos bilionários, deveria ser capaz de dormir tranquilos enquanto um único brasileiro dormir com fome. No entanto, atropelamos essas histórias porque a fome entre nós é normal e sempre houve quem vivesse de maneira miserável. Aceitamos de maneira conivente e dócil, leões banguelos que somos, que crianças adormeçam mais pela fome que pelo sono. 
 
Nós, a comunidade impossível que somos, aceitamos a cumplicidade de um mundo que exclui pessoas, que fecha para elas portas de quaisquer oportunidades, sem o menor traço de piedade. Não é à toa que o pensador indígena Ailton Krenak diz com toda sobriedade que nosso projeto de humanidade fracassou, que a humanidade como se pinta não abrange todos os humanos.
 
No mesmo dia, a vitória dos ricos riu na nossa cara mais uma vez: o Congresso – cujo chefe deveria ser o povo, mas são os lobistas – aprovou o direito de empresários comprarem vacinas contra a Covid 19 para uso privado. Ou seja, nossos congressistas assinaram o atropelamento do SUS sem o menor constrangimento.
 
Enquanto isso, nós assistimos à amoralidade do mundo que construímos, de que somos parte, como se tudo isso caminhasse dentro do aceitável. E o limite do aceitável é esse arame farpado que puxamos de mãos nuas diariamente para que nele caibam esses absurdos terríveis que não deveriam caber.

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