Andreia Braz

26/04/2021 16h53
 
Transformando o tédio em melodia
 
 
Procurar desesperadamente um passarinho de quem se ouve apenas um grunhido distante e sossegar apenas quando se encontra a ave, minúscula e fragilizada, e deixá-la aninhada à sua mãe, no alto de uma árvore, parece uma coisa simples para quem pode enxergar. Mas esse não é o caso de Mohamed, um garoto de nove anos que não pode ver com os olhos o que sente (intensamente) com o coração.
 
E com extrema dificuldade, o garoto alcança o ninho para ali deixar um filhote cujo abandono parece lhe causar profunda angústia. Num gesto de comovente delicadeza, ele nos mostra que é possível enxergar o mundo das mais diversas formas. Essa é uma das primeiras cenas do filme iraniano A Cor do Paraíso (1999), o qual narra a história de um menino que estuda numa escola para deficientes visuais e aguarda ansiosamente as tão sonhadas férias e o encontro com a família. A cena acontece enquanto Mohamed espera seu pai, que deve buscá-lo para os três meses de férias no vilarejo onde mora com o pai, sua querida avó e suas delicadas irmãs.
 
Um filme sensível, onde paisagens e sentimentos compõem o cenário de uma trama que revela toda a beleza do coração de um menino que tem um jeito singular de ver o mundo, pintando com as cores da alegria, e quem sabe, da esperança, as paisagens cinzentas que enegrecem a convivência marcada pela rejeição paterna, mas também pelo amor incondicional de sua avó, cuja vida parece intimamente ligada à do seu querido Mohamed. Um meninozinho que aprendeu a “transformar o tédio em melodia”, como sugere Cazuza.
 
Com direção de Majid Majidi, o filme mostra claramente a tão discutida e atual questão do preconceito e ao mesmo tempo reforça a luta pela inserção daqueles que não podem ser considerados “diferentes” ou “menores” porque não enxergam, não andam ou apresentam qualquer tipo de necessidade especial. 
 
Uma outra cena também merece destaque. Depois de muito implorar, Mohamed consegue frequentar, por um dia, a escola das crianças “normais”, e causa profunda admiração ao demonstrar que está lendo com melhor fluência que alguns garotos da sala em que estuda sua irmã. Mais uma vez, ele surpreende e mostra que é diferente não porque seus olhos (físicos) não conseguem enxergar, mas porque consegue ir além do que se vê, com sua sensibilidade e vontade de descortinar as riquezas do lugar onde vive, de vislumbrar beleza nas coisas mais simples. De alegrar-se com a presença das pessoas queridas, de sentir-se feliz depois de presentear sua “linda” avó com um brochinho e uma das irmãs com um colar de tampinha de garrafa feito por ele.
 
Mohamed quer “pegar o vento”, quando está voltando para casa com o pai, no ônibus. Ao chegar ao vilarejo, se emociona ao constatar que a árvore que havia plantado nas férias do ano anterior crescera um pouco mais que ele, conforme avisa sua avó. Tocar a água de um riacho também parece sublime para um garoto cuja visão muitas vezes parece não fazer falta, quando pensamos nas belezas que ele consegue distinguir com suas delicadas mãozinhas e, principalmente, com o seu coração, já tão dilacerado pela rejeição e pela falta de amor paterno, mas nunca insensível ao que lhe acontece ao redor. Talvez seja essa a razão de viver daquele menino que não entende porque Alá permitiu que viesse ao mundo daquele jeito. Eis a história de “um meninozinho que um dia descobriu a dor”, como diz José Mauro de Vasconcelos sobre Zezé, protagonista de O Meu Pé de Laranja Lima, um livro tão singelo e profundo quanto o filme que ora comentamos.
 
Diante do turbilhão de emoções que essa película me fez experimentar, uma das inquietações que não me deixa sossegada é pensar que nós, cuja visão é perfeita do ponto de vista clínico, muitas vezes não paramos para pensar na infinidade de coisas que passam despercebidas porque estamos sempre apressados, com um trabalho para concluir, uma prova para estudar, uma festa inadiável, um compromisso para o qual não podemos sequer pensar em chegar atrasados... 
 
E nessa correria diária, e quase irreversível, em que vivemos, parece não haver tempo para as pequenas belezas. Belezas que o protagonista do filme sabe enxergar tão bem, mesmo com suas limitações, como poderíamos supor. Razões que, incompreensivelmente, constituem a causa da repulsa paterna e do sentimento de revolta que o pai de Mohamed ostenta claramente quando se refere ao menino, no qual precisa “dar um jeito”, como afirma em uma das cenas em que decide, arbitrariamente, levar o filho para aprender uma profissão.
 
Com um lirismo pungente, A Cor do Paraíso reforça em nós a certeza de que a alegria de viver e o significado da nossa existência têm muito mais a ver com a postura que assumimos diante da vida e das limitações que ela nos impõe do que, propriamente, com as condições “reais” a que, muitas vezes, estamos submetidos. Mesmo em face da incessante rejeição do pai, Mohamed não fica se lamentando e procura encarar com otimismo suas dificuldades, contando para isso com o apoio e o amor daqueles e o aceitam com suas “diferenças”. 
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).