Andreia Braz

10/05/2021 11h12
 
 
Retratos de Osair Vasconcelos
 
 
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
                                   ( Manoel de Barros)
 
 
Uma das descobertas literárias mais agradáveis dos últimos tempos foi o livro de crônicas de Osair Vasconcelos “Retratos fora da parede”. A obra, publicada pela Z Editora, foi vencedora do Troféu Cultura 2018 na categoria Literatura. Evento idealizado pelo jornalista Toinho Silveira, o Troféu Cultura celebra diversas categorias envolvidas com arte no Estado do Rio Grande do Norte: artes cênicas, literatura, música, artes visuais, dança, produção cultural e fotografia.
 
Voltando ao livro de Osair Vasconcelos. Do projeto gráfico à temática das crônicas, tudo foi motivo de encantamento. O texto é impecável. A linguagem é ágil, contemporânea, telegráfica, poética. “Retratos fora da parede” é um daqueles livros que a gente lê de um fôlego só. E o dia escolhido para a leitura não poderia ter sido mais apropriado: um domingo chuvoso. Um daqueles dias preguiçosos em que a vontade de sair de cama é quase inexistente.
 
Eis um dos motivos do meu encantamento: o autor consegue falar com maestria de temas aparentemente banais – uma conversa com um engraxate, o beijo de um casal apaixonado no meio da rua, a chuva que chega de repente, transeuntes atravessando a rua em sua pressa cotidiana. Assim como Manuel Bandeira, talvez o narrador saiba que “a vida é uma agitação feroz e sem finalidade”. 
 
Cenas que fazem lembrar, também, João do Rio, Rachel de Queiroz, Rubem Alves, Vinicius de Moraes, Rubem Braga e tantos outros cronistas cuja forma de falar das coisas mais simples os torna singulares. Flores, gatos, lagartixas e passarinhos também são alguns dos personagens das crônicas de Osair Vasconcelos.
 
Outro ponto interessante nesses “Retratos fora da parede”: o autor aborda algumas situações cotidianas de forma poética e filosófica, promovendo uma reflexão necessária sobre dilemas existenciais. É o que podemos observar, por exemplo, nos seguintes textos: “Cuidado com a alegria”, “Como ficou”, “Como iludir relógios e chegar ao espelho” e “A escolha”. 
 
Em contraposição ao mundo barulhento/inquieto em que vivemos, tantas vezes de maneira frenética e automatizada pela pressa/pressão do cotidiano, lembrando a importância da quietude, diz o autor em “A escolha”: “O silêncio tudo permite, se abre a todas as interpretações, como que nos dá o que desejamos. Guarda, abastece de sonhos, envolve nossos ossos e nos frutifica. Nos dá as mãos, abraça-nos o dorso e conosco dança. O silêncio, embora não nos explique, nos compreende”. 
 
O lirismo, marca maior de cronistas como Newton Navarro, Berilo Wanderley, Luís Carlos Guimarães, Sanderson Negreiros e Marcius Cortez, para citar alguns mestres da crônica potiguar, é uma das características marcantes do texto de Osair Vasconcelos, uma prosa suave e deliciosamente irresistível.
 
Temas contemporâneos, como a superexposição nas redes sociais, por exemplo, também estão presentes na obra. A crônica “Um abraço” retrata perfeitamente a efemeridade/obsolescência das coisas nesses tempos líquidos. É o que podemos observar neste trecho: “Ai! Que namorados lindos, disseram todos da lista dos dois enquanto viam aqueles posts. Disseram apenas pelo exato segundo enquanto viam, porque em seguida à exclamação outras fotos já chegavam e era preciso conferi-las”.
 
A inovação da linguagem foi um outro aspecto que me chamou atenção na escrita de Osair. Ausência de pontuação e frases curtas são alguns dos aspectos que conferem ao texto uma agilidade que por vezes faz lembrar a linguagem cinematográfica. Imaginei alguns textos filmados como curtas-metragens, por exemplo. Outros, os vi encenados no palco de um teatro. Falando sobre o gênero crônica, Marcius Cortez disse que [as crônicas são] “Curtas, sem complicação, elas nos aquecem em dias de frio e nos abraçam quando ficamos quietos, só cismando”. Foi exatamente essa a sensação que tive ao ler Osair Vasconcelos naquele domingo cinzento e preguiçoso. O texto de Marcius consta do livro de crônicas intitulado “Presente de Natal” (2016).
 
A alusão a Ariano Suassuna, Câmara Cascudo, Manoel de Barros e Pablo Neruda mostra, além de algumas influências do autor, a importância da leitura na construção do escritor. Afinal, um bom escritor é, antes de tudo, um bom leitor. Osair demonstra grande afinidade com os autores citados. Tais referências fizeram aumentar ainda mais a minha admiração pelo autor e o desejo de conhecer outros livros seus. 
 
Os temas inusitados também merecem atenção. Na crônica intitulada “As voantes”, por exemplo, o narrador presencia um encontro de quatro palavras, as quais “chegaram de repente e pousaram no peitoril da janela [...] Chegaram assim, de repente, vindas não sei de onde e, paft! se instalaram”. O texto me fez lembrar o trabalho do próprio escritor e sua constante luta com a palavra. Talvez o narrador saiba, como o poeta de Itabira, que, “Lutar com palavras / é a luta mais vã”. Elas, por vezes, “Deixam-se enlaçar / tontas à carícia / e súbito fogem” (Carlos Drummond de Andrade). 
 
Em “Canto de muro”, texto sensível e arrojado, a criação de um condomínio de lagartixas faz uma singela homenagem ao mestre Cascudo e ao “apanhador de desperdícios” Manoel de Barros. “Canto de muro” também intitula um romance de Câmara Cascudo que, segundo Eulício Farias de Lacerda, “[...] é uma obra sui generis, história natural romanceada, onde o cientista se confunde com o poeta numa simbiose encantadora”.
 
Ao final daquele domingo preguiçoso, além de uma sensação de leveza proporcionada pela leitura, uma certeza: Osair Vasconcelos agora figura entre os meus cronistas prediletos e já aguardo ansiosa seu próximo livro. Como disse Marcius Cortez, no prefácio da obra, “recebo, meu caro, esse seu novo livro como uma festa. [...] Alumiosa é a sua mensagem: entendendo as pequenas coisas, nós afinamos o nosso sentimento de mundo”. Segundo Marcius, o autor “[...] confessa que seus retratos foram feitos a partir da janela ilusória do mundo”. Quem sabe “um mundo que traga de volta a doçura da manga que caiu hoje no meu quintal”, como descreve Osair na crônica “Pascae”.
 

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