Andreia Braz

24/05/2021 11h19
 
40 anos de sonho e de sangue
 
 
 
                 Eu apenas queria que você soubesse
                 Que esta menina hoje é uma mulher
                 E que esta mulher é uma menina
                  Que colheu seu fruto flor do seu carinho
 
                                                                      Gonzaguinha
 
 
Nunca fui uma pessoa de fazer muitos planos, idealizar o futuro, mas confesso que nos últimos tempos me peguei planejando algumas coisas que gostaria de fazer em breve, a maioria delas incluindo amigos e familiares. Talvez a pandemia tenha mudado um pouco essa perspectiva. Um desses planos era comemorar meu aniversário de 40 anos e lançar meu primeiro livro de crônicas no mesmo dia. Imaginei uma festa alegre e bem brasileira, com samba, caipirinha... Afinal, nada mais brasileiro que a crônica, um dos gêneros literários mais populares em nosso país. Quanto ao samba, nem é preciso dizer muito. O mestre Dorival Caymmi já se encarregou de fazer isso: “Quem não gosta do samba bom sujeito não é / Ou é ruim da cabeça ou doente do pé”. 
 
E por falar em samba, lembrei de uma canção de Janet de Almeida interpretada por Roberta Sá que pode resumir bem essa paixão pelo samba e o frisson que ele nos causa: “Porque no samba eu sinto o corpo remexer / E é só no samba que eu sinto prazer”; “O samba quente, harmonioso e buliçoso / Mexe com a gente e dá vontade de viver”. Que saudade das rodas de samba no Beco Lama! Que saudade dos eventos do Clube do Samba Potiguar! Eventos organizados pela cantora a produtora cultural Andiara Freitas. Essa música me faz lembrar, também, uma época muito boa da minha juventude, em que vivi uma paixão avassaladora com um escritor. Dessa época também fazem parte algumas canções de Chico, Bethânia, Vanessa da Mata, Maria Rita. 
 
Bem, voltemos ao meu aniversário. Pensei em reunir duas grandes paixões e celebrar a data de uma forma diferente. Afinal, era preciso celebrar de algum modo a conquista de lançar meu primeiro livro, graças à Fundação José Augusto, por meio da Lei Aldir Blanc, que proporcionou essa alegria a muitos escritores do Rio Grande do Norte. Aliás, tive a honra de revisar algumas dessas obras (uma novela de Luiz Penha; um romance de Ana de Santana; um livro de contos de Lúcia Eneida Ferreira; um romance infantojuvenil de Ana Cláudia Trigueiro; um livro infantojuvenil e uma HQ de Márcio Coelho). Outros artistas também foram contemplados por meio dessa lei. 
 
Assim, celebrar a conquista da publicação do meu primeiro livro seria uma forma de agradecer o apoio e a insistência de muitos amigos/leitores, especialmente Ana Cláudia Trigueiro, que praticamente “me obrigou” a fazer a inscrição no edital, e Tuyanne Medeiros, produtora cultural que elaborou meu portfólio e me deu algumas orientações importantes sobre o processo de inscrição. Ceiça Fraga, Edilson Carvalho, Emanuel Braz, Tereza Custódio, Jason Tércio, Tarcísio Gurgel, José de Castro, Rita Luzia, Penha Casado, entre outros, também fazem parte dessa lista. Não poderia esquecer do meu amigo e um dos maiores incentivadores, Nelson Patriota, que nos deixou há quatro meses, mas permanecerá vivo em meu coração. Essa seria, também, uma forma de agradecer tudo de bom que a vida tem me ofertado até aqui: a arte, a amizade, o amor, as viagens, as pequenas descobertas do mundo, no dizer de Clarice.
 
O que eu não disse anteriormente é que essa comemoração dependeria de um fator importante: o fim da pandemia, ou ao menos a flexibilização das atividades sociais com boa parte da população vacinada, como tem ocorrido em outros países. Há um ano, jamais poderíamos imaginar que o negacionismo e a atitude criminosa de alguns governantes chegaria ao extremo de rejeitar a compra de vacinas, a exemplo de um lote de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer que seriam entregues no final de 2020 e início de 2021. No entanto, o país continua mergulhado no obscurantismo e tudo que desejamos nesse momento é vacina para todos. Somente assim poderemos reverter essa situação (sem esquecer das quase 450 mil vítimas da Covid-19 no país. Quantas vidas teriam sido salvas com a vacina! O ator, comediante e roteirista Paulo Gustavo, 42 anos, sem comorbidades, foi uma dessas vítimas. Paulo deixou o marido e dois filhos gêmeos de quase dois anos).
 
Deixando de lado a revolta com esse cenário desolador que vivemos, volto a falar do meu aniversário porque, apesar de tudo, sou uma pessoa privilegiada e não posso deixar de agradecer pelo que tenho e celebrar minha existência. Meus 40 anos de sonho e de sangue, como diria Belchior. Apesar das adversidades, sou uma pessoa completamente apaixonada pela vida e sigo acreditando em dias melhores. Isso não significa dizer que tenho motivos para comemorar e/ou fazer festa. Isso eu jamais faria no contexto em que vivemos. Afinal, como diria Drummond: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente”. 
 
Escrevo esta crônica como forma de agradecer por tudo que sou e pelo que tenho conquistado ao longo dos anos. Refiro-me sobretudo ao aspecto afetivo, que é o mais valioso para mim, porque não possuo bens materiais, o que não me angustia de forma alguma. Tenho amigos que são colo, abrigo, afeto, esperança. Tenho o suficiente para viver e sou feliz por estar empregada nesse momento em que milhares de brasileiros sequer têm o que comer e/ou onde morar. É um privilégio trabalhar e estudar numa universidade pública num país em que a educação e a ciência estão sendo tão negligenciadas justamente por quem deveria apoiá-las. A propósito, o curso de Biblioteconomia tem me ajudado a ter um olhar mais crítico sobre a realidade e reforçado a importância de fazer minha parte para mudar a realidade em que estou inserida. Uma das áreas que mais me fascinam é a biblioteconomia social. Tenho saúde para trabalhar e isso é uma dádiva no país em que vivemos. Um país em que milhares de pessoas não têm a dignidade de conseguir se manter. Por isso, repito como um mantra estes versos de Belchior: “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte”.  
 
Em virtude desse contexto, havia decidido almoçar com três amigas no dia em que completei 40 anos, o que também não se concretizou, por motivos de saúde na família. À noite, pude desfrutar de um rápido momento de alegria com dois vizinhos. Carla e Marcos encomendaram um bolo singelo para que a data não passasse em branco. Foram muitas as pequenas alegrias do meu aniversário e cada uma delas foi uma dose de afeto e esperança nesses tempos tão incertos. Nas primeiras horas da manhã recebi um pequeno arranjo de flores (Mona, Adri e Lindiane), logo depois uma chamada de vídeo de minha amiga Ceiça Fraga, parceira de viagens, cafés, teatro, cinema, de quem estou morrendo de saudade. À tarde, uma visita muito especial: minha irmã Ana Isabel e minha sobrinha Raphaela vieram tomar um café comigo. E no final da tarde, outra surpresa: um amigo que faz aniversário no mesmo dia que eu manda entregar umas coisinhas deliciosas para que eu pudesse desfrutar de uma noite de queijos e vinhos. Achei tão singelo aquele seu gesto, justamente no seu dia, em que ele também deveria estar recebendo presentes e sendo mimado. Quero abraçá-lo tão logo seja possível e agradecer pessoalmente seu gesto de carinho. Quando tudo isso passar, tomaremos um café e festejaremos juntos. À noite, um telefonema do meu irmão Jonas e família. Foi tão legal conversar com ele e Alessandra, cunhada, e com os sobrinhos que moram em Belém: Letícia, minha leitora assídua, que está se preparando para o Enem, e Lucas, com quem conversei sobre leitura e fiquei de indicar uns livros bem legais de crônica e outros gêneros. Numa coisa concordamos: leitura tem que ser agradável, não pode ser obrigação. Fernanda Protásio, a outra sobrinha que mora em Belém, também me presenteou com uma linda e comovente mensagem de texto. Estudante de Medicina e super dedicada aos estudos, assim como a irmã Juliana, está sempre lendo minhas crônicas e acompanhando meu trabalho. Adoro nossos papos!
 
Embora meu aniversário tenha sido totalmente diferente do planejado, posso dizer que tive um dia muito especial, e uma das lições mais importantes que aprendi nesse dia está relacionada ao valor das coisas simples e à transitoriedade da vida. Lembrei do ano passado, em que também fiquei em casa, longe dos meus familiares e amigos, por causa da pandemia, e das inúmeras demonstrações de afeto que recebi (até almoço eu recebi do meu amigo Luiz Rocha). Uma delas foi a visita do meu amigo Nelson Patriota. Daria tudo para receber a visita dele neste meu aniversário e passar algum tempo conversando sobre o nosso trabalho, sobre os livros que ele estava lendo... Que falta você me faz, querido! Mas saiba que tento seguir alegre, otimista e cheia de esperança na vida e nas pessoas. Você sempre falava do meu entusiasmo perante a vida. 
 
Uma canção da banda Francisco, el hombre talvez sintetize o que quero dizer: “Prefiro queimar o mapa / Traçar de novo a estrada / Ver cores nas cinzas / E a vida reinventar”. 
Apesar de tudo, quero continuar assim, acreditando que dias melhores virão. Ah, e sigo trabalhando bastante, pra variar. Aliás, ainda não me acostumei com sua ausência e por vezes me pego querendo te enviar um e-mail para tirar dúvidas ou mesmo te indicar algum cliente. Difícil é dizer a alguns clientes que não posso mais indicar o velho tradutor de sempre. Sigo tentando colocar em prática algumas lições que você me ensinou e agradecendo pela dádiva da nossa amizade. Afinal, como você costumava dizer, “mañana es outro dia”. Sigamos.
 

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