Andreia Braz

26/07/2021 12h18
 
Os encantos de João Gomes
 
 
 
Eu acredito que a música pode curar. As pessoas encontram paz na música.
                                                                                                              Paul McCartney
 
 
 
Arroz de leite, feijão verde, paçoca, frango e salada. Suco de caju. Tudo pronto para o almoço. Aviso a Luiz que a comida está na mesa. Luiz, também conhecido como Galego, é pedreiro e está fazendo um serviço aqui em casa. Decidi fazer algo diferente antes da refeição. Perguntei se poderia colocar uma música. Ele respondeu que sim. Quando João Gomes começou a cantar, ele disse: “meu filho só escuta isso agora”. 
 
Confesso que até bem pouco tempo atrás eu não fazia a menor ideia de quem era João Gomes. Quando escutei seu nome pela primeira vez, pensei que se tratava de um homem mais velho. Sua voz grave e aguda também nos leva a pensar isso. Voz de vaqueiro, dizem alguns. Tampouco conhecia Tarcísio do Acordeon e Kara Véia. Tarcísio do Acordeon e João Gomes são cantores que começaram a fazer sucesso durante a pandemia. Conheci a música desses três artistas por intermédio de Cláudio Everton, que ama vaquejada e conhece profundamente os costumes do sertão. É apaixonante escutá-lo falando dos costumes do povo do interior. Tarcísio do Acordeon, que já trabalhou como feirante, é cearense e alcançou o sucesso no início de 2020. Vaqueiro e locutor de vaquejada, Kara Véia (1977-2004), alagoano de Chã Preta, é uma grande referência para os dois artistas acima e para dezenas de outros nomes do forró. Seu canto é triste. Um lamento. Lembra o aboio do vaqueiro. Há algo de belo na tristeza do seu canto. 
 
Voltemos a João Gomes. O estudante de Agropecuária do Instituto Federal do Sertão Pernambucano (IF Sertão PE) nasceu em Serrita, Pernambuco, conhecida como a capital do vaqueiro, e mora em Petrolina. Foi na escola que ele começou a cantar nas rodinhas de amigos e depois compartilhar os vídeos antes redes sociais. Mas sua relação com a música é antiga, ele cantava no coral da igreja desde os sete anos. “Meu Pedaço de Pecado” e “Eu Tenho a Senha” são algumas das composições de João Gomes que estão em alta. Aliás, ele é o artista brasileiro mais ouvido no YouTube e no Spotify. É o único brasileiro no Top 50 do Spotify. 
 
João Gomes tem magnetismo. Difícil explicar o fascínio que exerce sobre mim nesse momento. Ainda tímido e dando os primeiros passos na carreira, ele encanta com seu jeito simples e sua delicadeza ao se dirigir aos milhares de fãs espalhados pelo Brasil inteiro. Sempre atencioso e delicado, especialmente com as crianças, faz questão de agradecer tudo que vem conquistando e demonstra sua fé na maioria dos posts publicados nas redes sociais.
 
Meu sonho de consumo, pós-pandemia, é ir a um vaquejada e/ou assistir a um show dele. Como diz meu amigo Luiz, “é uma coisa do nosso tempo [escutar João Gomes], tem que acompanhar”. Estou fazendo isso, amigo. E esse encantamento cresceu ainda mais depois de uma viagem pelo Seridó com Cláudio Everton. Ele levou um pendrive com músicas de Tarcísio do Acordeon e João Gomes e essa foi a trilha sonora da nossa viagem, que se estendeu até Campina Grande para uma rápida visita a dois amigos queridos (Aliery e Adjael). Não foi possível encontrar outros amigos que vivem na cidade, como o professor universitário e escritor Giuseppe Ponce Leon. Uma amizade que teve início na UFRN, em um evento sobre Zila Mamede, e virou parceria de trabalho depois. Tive a honra de revisar seu livro “Correspondência modernista e regionalista de Luís da Câmara Cascudo (1922-1894)”, lançado em 2019 pelo CCTA/UFPB. Nosso café ficará para a próxima viagem, querido. Depois dessa overdose de música e aprendizado sobre o universo sertanejo, prometi que finalmente irei conhecer a vaquejada de Santo Antônio do Salto da Onça, a cidade do meu amigo Cláudio, quando a pandemia acabar. Vou preparar as botas e o chapéu de vaqueiro.
 
E por falar em vaquejada, vale lembrar que Serrita, cidade natal de João Gomes, celebra anualmente, desde 1971, a famosa Missa do Vaqueiro, que acontece no Parque Nacional do Vaqueiro, no Sítio das Lajes. Inicialmente, a missa era um protesto pelo assassinato impune do vaqueiro Raimundo Jacó, primo de Luiz Gonzaga, ocorrido em 1954. O crime ocorreu no sítio onde é realizado o evento que atrai centenas de vaqueiros do Nordeste e Nordeste. Uma celebração de amor ao sertão. Um ato de fé do homem sertanejo. “Numa tarde bem tristonha / Gado muge sem parar / Lamentando seu vaqueiro / Que não vem mais aboiar”, diz a canção intitulada “A morte de um vaqueiro”, composição de Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho. Um baião-toada que lembra os aboios de Raimundo Jacó, também conhecido como Raimundo Aboiador ou Raimundo Doido. Ele era muito respeitado por sua voz ao tanger e atrair o gado, além de sua habilidade em capturar o animal fugido. Raimundo tinha um cachorro chamado Brasileiro, que esteve ao seu lado até o fim. Encontrado junto ao corpo do dono após o ato covarde que tirou sua vida, o fiel escudeiro morreu no túmulo do vaqueiro. 
 
Dentre os textos que li para complementar esta crônica, destaco uma matéria emocionante publicada pelo Diário do Nordeste em junho de 2020. Entre outras coisas, o texto destaca a comemoração dos 50 anos da Missa Vaqueiro, que foi realizada sem público devido à pandemia da Covid-19.
 
Voltemos a falar de João Gomes. Dono de uma voz marcante, o menino de apenas 18 anos vem encantando o Brasil com seu jeito simples e seu amor desmedido pela cultura sertaneja. Prova disso é a música que fez em homenagem ao avô materno, o vaqueiro Renato Gomes, “Que nem vovô”. Seu tio Fernando também era vaqueiro e foi a inspiração para o nome do artista, João Fernando Gomes Valério. Ambos já partiram dessa vida. “Eu quero ser um véi que nem vovô / E viver por amor a vaquejada”, diz um dos versos da canção. 
 
Como a maioria dos jovens do seu tempo, João Gomes está sempre postando vídeos nas redes sociais. Aliás, foi por causa dos vídeos publicados no Tik Tok que ele explodiu e está começando a colher os frutos do sucesso. A maioria deles são músicas, mas há também aqueles mais espontâneos, com a avó, por exemplo, onde faz muitas brincadeiras e pede que ela interaja com os fãs. Semana passada ele compartilhou com os fãs sua primeira viagem a São Paulo, onde foi gravar um programa de televisão e atender a outros compromissos profissionais. Os vídeos com o humorista/radialista Mução estão muito divertidos. Também gostei dos vídeos da semana anterior que mostram sua viagem ao Pará. Seu deslumbramento com as belezas naturais me deixou ainda mais fascinada por ele. Olhar sensível. Olhar de poeta. 
 
E por falar em poesia, João Gomes tem uma ligação muito forte com a literatura e a escrita. Em uma de suas entrevistas ele destaca a importância da professora de português que lhe ensinou a fazer versos. Um orgulho danado dos professores de português do nosso país, que aliás ainda precisa entender que a educação é o caminho da mudança. Ele adorava escrever poesia na escola. Diz que era sua aula predileta. Aliás, outro dia legendou uma foto com uns versos de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa): “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. O nome do poema é “Tabacaria”. Alberto Caeiro é o poeta do campo. É o poeta da simplicidade e das coisas puras. Guardador de rebanhos, viveu em contato com a natureza e dela extraiu os valores ingênuos com os quais alimentava a alma. 
 
Voltando aos talentos de João Gomes. Eclético, regravou “Amado”, de Vanessa da Mata, e “Quando chega a noite”, de Tiê e outros compositores. Minha admiração por ele aumenta a cada dia. Ele diz que sempre precisou da música para se expressar. E quando o assunto é inspiração musical, destaca dois compositores fundamentais: Belchior e Cartola, e afirma que traz um pouco da filosofia de cada um deles, como escritor e músico. “Sempre ouvi música nas pegas de gado. Quero trabalhar bem e escrever boas canções. Tento expressar o que eu sinto, leio desde criança e gosto das palavras”, disse em entrevista ao jornal O Globo.
 
Enquanto escrevo esta crônica, escuto Luiz Gonzaga e penso que o velho Lua ficaria muito feliz em saber que o seu Pernambuco é também a terra de um menino que está encantando o Brasil com seu jeito simples de cantar as coisas do sertão. O mundo é seu, João Gomes! Voa, menino!
 

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