Andreia Braz

13/09/2021 12h06
 
Verdades que viraram ficção
 
 
 
"O que faço é tentar pintar com palavras as minhas fantasias diante do assombro que é a vida."
 
                                                                                                                               - Rubem Alves
 
 
Rosycleide é dessas mulheres que exalam sensualidade. E seu trabalho exige que ela seja assim, que exiba seu corpo e desperte o desejo dos que pagam caro para desfrutar de algumas horas de prazer. É bem verdade que alguns pagam, também, somente para vê-la se exibindo e receber alguns carinhos, digamos assim. Foi o caso de um homem com disfunção erétil, mas que não resistiu aos apelos da rapariga mais cortejada do cabaré de Beth Cuscuz. Outros, mais exigentes e endinheirados, pagam por um final de semana com a moça em outra cidade, longe dos olhares curiosos que poderiam, por exemplo, abominar um ménage à trois. É o caso de um certo governador que vai a Teresina conferir de perto os dotes dessa mulher sedutora que tem enlouquecido os homens das redondezas e propõe à dona do cabaré um final de semana com Rosycleide por uma nota alta (detalhe: a esposa dele vai junto). A cafetina faz um certo charme no começo porque sabe que o negócio será lucrativo. O trajeto é feito de helicóptero, na calada da noite, para evitar mexericos.
 
A história de Rosycleide, cujo nome de batismo é Geralda, começa em Acari, no interior do Rio Grande do Norte. De origem pobre, filha única de uma viúva, ainda menina começa a exibir seu corpo para os moleques da cidade. As exibições geralmente acontecem nas paredes do açude Itans. Em troca, pede feijão, arroz, farinha... Não queria ver a mãe passando necessidade e essa foi a única maneira que encontrou de poder ajudá-la. Já adolescente, difamada entre os moleques do lugar, foi defendida por Dagoberto, o rapaz mais rico da cidade, filho do dono da farmácia e do armazém e estudante de odontologia na capital. O episódio me fez lembrar Geni, personagem da canção-crônica “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque.
 
Essa é uma das muitas histórias do romance “A vingança” (Z Editora, 2018), de Antônio Melo, que estreou na literatura de forma auspiciosa, no dizer do seu amigo e também jornalista Osair Vasconcelos, que assina as orelhas e é responsável pelo selo de publicação da obra. As histórias são ambientadas no sertão da Paraíba, no Ceará, no Piauí, no Maranhão e no Rio Grande do Norte, lá pelos idos da década de 1970. Tempos de seca, coronelismo, ditadura, pistolagem, machismo... Impossível ficar indiferente às histórias de Chico, Dudé, Rosycleide, Valentão e tantos outros personagens que compõem a narrativa ágil e assombrosa de “A vingança”. São mais de 300 páginas de aventuras e desventuras pelos rincões de um Nordeste castigado pela seca e vítima dos mandos e desmandos de políticos corruptos que pregam um progresso enganoso, em nome de muitos privilégios e da manutenção dos seus currais eleitorais, sustentados, sobretudo, pela miséria e ignorância do povo. Gente que é enganada de diversas maneiras. Gente que muitas vezes enxerga seus patrões como “homens bons”, e até como “homens santos”, porque estes lhes “concedem” terra para plantar, um pouco da farinha que produzem ali, alguns litros de leite, tudo à custa de muita exploração. Gente que é devota de Padre Cícero, São José, Santa Rita de Cássia, Santa Luzia, devoção que os mantém esperançosos de que dias melhores virão, mesmo que nunca cheguem. Jornalista experiente e observador arguto, Antônio Melo assina um texto enxuto, objetivo, privilegiando os diálogos e abrindo mão de longas descrições de cenários, ambientes e personagens. “Poupei-me de descrever a região: acho que Euclides da Cunha e Graciliano Ramos roubaram-me a ideia que eu já tinha, antes mesmo de ter nascido”, diz o autor, na contracapa do livro, dando mais uma prova de sua originalidade e ousadia. 
 
Aliás, acho que alguns personagens são muito bem caraterizados tanto pelas descrições certeiras do autor como pelos diálogos sem meias-palavras, tão característicos do povo nordestino, uma gente espontânea, acolhedora, resiliente... Talvez uma máxima de Rousseau possa sintetizar a essência desses personagens, tão calejados pelo sofrimento da seca e pelas injustiças sociais: “o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe”. Ou, quem sabe, estivesse com a razão o filósofo francês Jean-Paul Sartre quando afirmou que “o homem não é nada mais do que ele faz de si mesmo”.
A ideia inicial era escrever um livro de contos, que acabou se transformando nesse romance baseado “em verdades que viraram ficção”, como ele mesmo define a obra na dedicatória do exemplar com que me presenteou durante o trabalho de revisão do seu segundo romance, que está no prelo. A personagem central ganhou tamanha força que ele não teve outra opção a não ser não escrever um romance. Mistérios do mundo da ficção...
 
E por falar em protagonista, algo que me chamou atenção nos personagens é que eles não se encaixam em certos padrões e não podem ser descritos/compreendidos sob um único ponto de vista. A ausência de uma visão maniqueísta, como tantas vezes observamos na literatura, nos aproxima mais dos personagens (e de suas idiossincrasias) e nos faz compreender melhor os caminhos que decidem(?) percorrer ao longo da narrativa. Afinal, como diz Drummond, “todo ser humano é um estranho ímpar”.
 
Para Chico Mendonça, escritor e jornalista, que assina o prefácio da obra, Antônio Melo apresenta “[...] não uma visão romântica, mas um olhar afetuoso sobre as pessoas e, portanto, revelador de suas essências. Seus personagens, pelo mesmo viés, ganham vida, vida real”. Coincidentemente, também observei isso no seu “Diário das folhas mortas”, que traz personagens cheios de conflitos/dilemas, mas certos de que precisam lutar pelos seus ideais, independentemente do julgamento alheio. “Antônio Melo gosta de gente porque olha para elas e as aceita como são, não exige aperfeiçoamentos para caberem no seu afeto, no seu olhar”, arremata Chico. Talvez o segredo seja o que ensina o poeta Manoel de Barros: dá “respeito às coisas desimportantes / e aos seres desimportantes”. Afinal, como diz o poeta mato-grossense, no seu “Tratado geral das grandezas do ínfimo”, poderoso não é aquele que descobre ouro, mas aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
 
 

 


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