Andreia Braz

15/12/2021 09h36

 

Querida Zila

 

Penso-te

como quem sonha uma estrela

que inventou na madrugada

e no desejo de guardá-la

viva.

 

(Zila Mamede, “Para Manuel Bandeira”)

 

Querida Zila, 


Não sei por onde começar esta singela homenagem, mas devo dizer-te, primeiramente, da alegria de poder falar da força da tua poesia e da importância que ela teve (e tem!) em minha vida. O primeiro contato com tua poesia foi no vestibular da UFRN, com o livro O Arado, cujos versos me deixaram encantada e com o desejo de conhecer mais aquela poeta que falava das coisas com tanta simplicidade. Lembro como se fosse hoje o dia da prova de língua portuguesa, em que eu ficava lendo e relendo os teus versos, maravilhada com o teu modo de dizer as coisas, desejando que a prova inteira fosse recheada de poemas. Dos versos que marcaram aquele dia, trago comigo estes: “Um rio adormecido em cada infância, / rio seco ou de enchente, intempestivo / [...] Mas o que conta em nós é mesmo o rio / correndo na memória com seu jeito [...] a força de ser rio e ser caminho [...]”, que fazem parte do poema intitulado “Rio”, que dedicaste a Mauro Mota. 

Depois da prova, fiquei com aquela sensação de incompletude, um desejo irrefreável de querer saber mais da poeta nascida em Nova Palmeira (1928), que viera para Currais Novos ainda menina e depois, fixara-se em Natal, onde construiu uma sólida carreira intelectual, atuando como jornalista e especialmente como bibliotecária. Fui arrebatada pelos versos da jovem poeta que tinha verdadeiro fascínio pelo mar.

E, aprovada para o curso de Letras na universidade onde trabalhaste durante boa parte de tua vida e onde deixaste um grande legado de amor à sabedoria, pude, novamente, ter um contato mais intenso com a tua poesia. Nas aulas de Literatura do Rio Grande do Norte, com o professor Tarcísio Gurgel, vivenciei momentos inesquecíveis, tanto em relação ao deslumbramento com os conteúdos ministrados por esse mestre, mas também, e especialmente, pelos momentos em que ele recitava os versos de poetas norte-rio-grandenses como Ferreira Itajubá, Auta de Souza, Othoniel Menezes, Jorge Fernandes, Luís Carlos Guimarães... Um deleite à parte. Que alegria poder escutar alguns dos teus poemas na voz de um homem tão apaixonado pela arte e ciente da importância dos nossos escritores! E mais, de saber que ele conhecera a poeta de quem falava com tanta alegria e entusiasmo. Fico a imaginar a longa entrevista que ele fez contigo, na UFRN, naquela tarde silenciosa e solitária... E das muitas alegrias de suas aulas, jamais esqueço o dia em que recitou “Banho (rural)”, “Mar Morto” e “Bois Dormindo (I)”, este dedicado ao teu amigo Tomé Filgueira, grande nome da pintura norte-rio-grandense que, assim como tu, partiu com a “Indesejada das Gentes”. Gosto da leveza desse poema e das imagens que conseguiste criar a partir de um tema aparentemente comum, mas ao mesmo tempo inusitado pela sua abordagem. “A paz dos bois dormindo” é algo que também me fascina, querida poeta. Quando o leio, fico a vislumbrar o nascer das açucenas, que se podia observar no “silêncio da campina”...

E depois das aulas do professor Tarcísio, fiquei ainda mais interessada em conhecer o teu trabalho, que não se resumiu à arte de escrever poesia, ofício que te consagrou em terras potiguares, mas também se fez ecoar em outras partes do Brasil. Sei da tua amizade com poetas como Manuel Bandeira e Drummond, com quem trocaste inúmeras cartas e mantiveste uma longa relação de afeto e aprendizado. Também sei o quanto esses dois baluartes da poesia brasileira admiravam os teus versos, como se pode ler em tua correspondência já publicada. Mas a tua amizade com intelectuais não parou por aí. São inúmeros os admiradores da tua poesia e do teu exemplar trabalho como bibliotecária. Da tua amizade com João Cabral de Melo Neto e com o mestre Câmara Cascudo resultaram obras fundamentais sobre a bibliografia desses dois autores. E outro grande nome da literatura brasileira, o pernambucano Edson Nery da Fonseca, amigo de Bandeira e um dos estudiosos de sua obra, também fez parte desse teu ciclo de amigos. Assim como tu, Edson Nery também foi bibliotecário e, pelo que sei, um grande apaixonado pela tua poesia. Famoso por recitar muitos poemas do mestre Bandeira, alguns gravados em cd, ele, quando em visita a Natal, também costumava recitar alguns poemas teus... 

Além do teu legado poético, eternizado em livros como Rosa de Pedra, Navegos, Exercício da Palavra, Salinas, entre outros, fizeste um trabalho brilhante como bibliotecária da UFRN, cuja biblioteca central hoje leva teu nome, uma justa homenagem ao teu trabalho e à tua dedicação como profissional. Dizem que eras tão rigorosa com o controle dos livros da BCZM que uma vez o próprio reitor da universidade não pôde pegar um livro porque não tinha cadastro. Folclore ou não, esse exemplo ilustra a seriedade imprimida ao teu labor. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa instituição onde também trabalhaste e, como em tudo que fizeste na vida, numa entrega de paixão e zelo. Que outra motivação poderíamos buscar como espelho nestes dias difíceis de hoje?

E depois de tantas leituras poéticas, que alegria foi descobrir uma Zila cronista! Refiro-me ao livro Exercícios de Poesia: textos esparsos, edição cuidadosamente organizada pelo professor Humberto Hermenegildo de Araújo, tua irmã Maria José Mamede Galvão e tua sobrinha Marise Adriana Mamede Galvão, que traz à baila textos publicados na Tribuna do Norte, onde atuaste como jornalista, mas não publicados em livros. A obra traz alguns poemas e seis textos em prosa. Fiquei encantada com a tua sensibilidade perante algumas questões cotidianas, pois a crônica é também um dos gêneros com que muito me identifico. Um dos textos que mais me comoveu chama-se “Posto de Salvamento”, em que narras uma cena traumática – o afogamento de uma moça numa praia de Natal – ao mesmo tempo que chamas a atenção das autoridades para a construção de postos de salvamento em nossas praias.

Sei que já me estendi demais, e que receberás muitas outras cartas, pois o momento é de reencontro com tua poesia peregrina, de sentida saudade dos que conviveram contigo e/ou simplesmente te conheceram pelos teus versos, como é o meu caso. Assim, gostaria de encerrar meu preito de saudade falando do aniversário de trinta anos de tua partida e das muitas comemorações que a cidade pretende fazer para celebrar a imortalidade da tua obra, do teu amor pela literatura e do teu legado como profissional exemplar que foste. 

É hora de falar da celebração da tua poesia. É hora de falar da inexplicável alegria e do intraduzível sentimento de poder participar desse ciclo de homenagens aos trinta anos do teu encantamento, mas também, e sobretudo, do desejo de que tua poesia seja disseminada nas escolas, nas ruas, nas praças... Que os versos recitados pelo professor Tarcísio Gurgel, em suas aulas, possam ecoar por toda cidade e cheguem aos mais recônditos espaços. Que o teu lirismo possa inundar essa cidade e que a dor pela tua partida seja transformada em alegria pela beleza dos teus versos, “Ingênuo enleio de surpresa, / Sutil afago em meus sentidos” [...], para lembrar um verso de Bandeira que muito bem pode traduzir a delicadeza da tua poesia, que cantou o mar, o sertão e as coisas simples da nossa gente.

Com afeto,

Andreia Braz

 

 


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