Andreia Braz

01/02/2022 10h21

 

As crônicas afetivas de Arnaldo Jabor

Por mais interminável que seja a lista de livros não lidos, um leitor nunca resiste a um novo livro. E foi exatamente isso que aconteceu quando deparei com o livro “Amor é prosa, sexo é poesia: crônicas afetivas”, de Arnaldo Jabor (Objetiva, 2004). Estava eu no Sebo Natal, apenas fazendo uma visita ao proprietário, que por acaso é meu irmão, quando vi o livro. Achei pouco e ainda comprei o “Livro dos ressignificados” (Companhia das Letras, 2017), de João Doederlein, mais conhecido como @akapoeta, seu perfil nas redes sociais. Apaixonado pela escrita desde a infância, escreveu os primeiros poemas aos onze anos, na juventude teve a ideia de atribuir novos sentidos às palavras. O projeto Ressignificados saiu da internet para se transformar em livro alguns anos depois. O verbo amar, por exemplo, é definido assim: “é o amor enquanto acontece. é sair para jantar em terças-feiras chatas e se entregar nos braços de quem sabe te fazer bem”. E o substantivo interesse ganhou a seguinte definição: “aquilo que eu sinto pela cor dos seus cabelos e pelo timbre de sua voz, é aquilo que me invade os olhos quando eu vejo você e esqueço que o resto do mundo inteirinho está ali do lado”. 

Ao chegar em casa, já comecei a ler o livro de Jabor. Foi amor à primeira vista. Adorei o estilo dele e as temáticas abordadas de forma simples, direta, sem meias-palavras, inclusive quando o assunto é considerado tabu para alguns. Ele tem uma forma peculiar de narrar os fatos e vai enriquecendo cada texto com reflexões filosóficas, quase sempre ilustradas por citações de músicos, poetas, o que torna cada texto uma obra de arte. É claro que eu também tive minhas decepções literárias, digamos assim, e há declarações/posicionamentos do autor com as quais não concordo, por exemplo.

À medida que a leitura ia avançando, o fascínio também aumentava. É como se aos poucos eu fosse desvendando seu universo particular. Sabe quando você está conhecendo um novo amigo e vai descobrindo, pouco a pouco, os gostos e ideologias comuns? É mais ou menos essa a sensação de estar diante de um novo autor. De certa forma, ele passa a ser um novo amigo que permanece conosco durante alguns dias ou pela vida inteira. 

É uma sensação inexplicável essa de mergulhar no mundo de um escritor. Muitas vezes tive a impressão de estar diante do autor, numa daquelas conversas intermináveis que deixam a gente sem fôlego. Era como se eu estivesse na companhia de um velho amigo com quem posso conversar tranquilamente sobre qualquer assunto.

E por falar em conversa boa, partilhei com meu namorado algumas impressões do livro e ele adorou as temáticas abordadas pelo autor. Ficou bastante surpreso com algumas coincidências entre a personalidade de ambos. Aliás, é com ele que mais tenho conversado sobre literatura e arte de modo geral. Ultimamente, ele tem me ensinado muita coisa sobre música e fotografia. Nos últimos meses, Lula tem sido meu melhor interlocutor. E nossos diálogos têm sido cada vez mais edificantes. Outro dia, por exemplo, ele me enviou alguns textos sobre um filme que assistimos juntos, “A filha perdida”, sucesso da Netflix inspirado no livro homônimo da escritora italiana Elena Ferrante, autora da tetralogia “A amiga genial” e outras obras de sucesso. Adoramos o filme e já planejamos assistir outros. Como diz a canção de Nando Reis: “Não vejo a hora de te encontrar / Continuar aquela conversa / Que não terminamos ontem”...

Voltemos ao livro de Arnaldo Jabor. Fico lendo os textos e imaginando o quanto Lula gostaria de viver aquela experiência também. Aliás, já separei alguns livros para emprestar a ele e espero que goste. Outro dia, ele me fez um convite ideal para partilharmos as deliciosas crônicas de Arnaldo Jabor. Era um final de tarde de sábado e estávamos na AABB, lugar perfeito para conversar, curtir uma boa música e relaxar. Eu estava tomando um cappuccino e ele, uma cerveja. Nada mais propício para uma boa leitura. Escolhi a crônica intitulada “O amor deixa muito a desejar”, que inicia falando sobre o filme “Fale com ela”, de Almodóvar. 

Já fizemos isso outra vez num café da Praia dos Artistas e foi maravilhoso. O livro da vez foi “Crônicas do Beco da Lama”, de Leonardo Sodré (Sebo Vermelho, 2021), uma reedição da obra em homenagem póstuma ao autor, falecido em 2017. O texto escolhido foi “Amor maduro”. Ao ler a crônica, a impressão que tive foi exatamente esta: esse texto poderia ter sido escrito por Lula. Lembra muito sua forma de escrever/falar. Eles pensam de forma muito semelhante. Coincidências do amor. Foi impressionante a reação dele quando li o texto. A propósito, esse livro será tema de uma outra crônica. Tenho algumas coisas pra falar sobre esse encontro emocionado com a obra de Leonardo Sodré, que assim como eu tinha Rubem Braga como uma de suas referências, e gostaria de partilhá-las com meus queridos leitores. 

Voltemos às crônicas de Arnaldo Jabor. Eu e minhas digressões. São muitos textos e selecionei três deles para comentar na crônica de hoje. O primeiro deles é “Meu avô foi um belo retrato de um malandro carioca”. Assim inicia a crônica: “Este texto é sobre ninguém. Meu avô não foi ninguém. No entanto, que grande homem ele foi para mim”. Que delícia de texto! O que mais me comoveu foi a relação afetiva deles e os ensinamentos que aquele homem simples deixou para o seu amado neto. É tão bonito quando ele fala dos passeios que faziam juntos ao Maracanã, ao Jockey e à Avenida Rio Branco, onde tomavam refresco na Casa Simpatia. A despedida no leito de morte foi um dos momentos mais marcantes da crônica, quando o avô declara seu amor pela vida e a tristeza pela partida iminente: “É chato morrer, seu Arnaldinho, porque eu nunca mais vou à Avenida Rio Branco”. Jabor encerra a crônica de forma pungente: “Meu avô não era ninguém. Mas nunca houve ninguém como ele”.

Outro texto que me chamou atenção foi “O amor dos anos 60”, em que o autor fala sobre a questão da virgindade e da revolução que foi, na época, a pílula anticoncepcional.  Lembra de uma tarde especial com sua primeira grande paixão e os momentos de amor do casal num “aparelho” secreto do Partido Comunista. (Sobre a questão da pílula, sabemos que hoje há muitas discussões em torno do assunto, tanto no que se refere à questão do machismo no sentido de somente a mulher se prevenir para não engravidar, quanto em relação aos efeitos colaterais desse medicamento, mas não podemos desconsiderar sua importância numa época em que a mulher estava lutando por sua liberdade sexual. A criação da pílula anticoncepcional foi algo revolucionário para as mulheres, que a partir de então passaram a decidir se queriam ou não ter filhos). 

E por falar em amor, uma leitora muito especial escreveu um e-mail para o autor sobre uma de suas crônicas e ele o reproduziu no livro, uma resposta muito interessante àquela que ele considerava sua namoradinha de infância. O título da crônica é “Resposta a uma moça 50 anos depois”. Detalhe: ela não sabia desse amor platônico alimentado pelo garoto tímido da Urca que sonhava jogar nos times de praia para desfilar com sua camisa colorida na amurada onde ficavam as garotas assistindo aos famosos jogos de futebol que movimentavam o bairro. Assim ele define o amor por Silvinha, a moreninha de olhos verdes, como ele a descreve: “Você despertou em mim um tremor novo, a primeira emoção do que mais tarde vi que chamavam ‘amor’. Em uma tarde cinzenta, em frente ao portão de sua casa, eu senti uma alegria inesquecível como se tudo ali estivesse no lugar perfeito [...]. Não sei por que, senti uma felicidade insuportável, como se ouvisse o calmo funcionamento do mundo”.

Ao terminar de ler um livro arrebatador como esse, a sensação é sempre a mesma, de quando precisamos nos separar de alguém que esteve conosco durante muitos dias. Uma relação de afeto, paixão. Nossos encontros matinais deixarão saudade, querido Arnaldo Jabor. Mas não vou me distanciar de você, meu caro amigo. Vou procurar outros livros seus e continuar essa nossa conversa tão agradável que me fez viajar pelo Rio de Janeiro dos anos 60; me fez conhecer um pouco da sua infância e juventude; me fez entender aquele garoto tímido que nunca conseguiu se destacar em nenhum time da escola (tampouco nos times de futebol de bairro, tão tradicionais à época); me fez saber um pouco dos seus encontros e desencontros amorosos, de suas questões existenciais e de seus posicionamentos políticos/ideológicos; me fez conhecer um pouco de sua vivência amorosa com seu amado avô, “um verdadeiro malandro carioca”; me fez chorar com você a saudade que sente de sua mãe e o desejo de telefonar para ela; me fez conhecer um pouco sobre o universo do futebol e a magia que ele exerce sobre a maioria de nós brasileiros (sempre me emociono quando vejo estádios lotados e torcedores extasiados, isso é algo tão nosso). 

Apesar da sensação de vazio que me invadiu ao final da leitura, encerro esta crônica feliz e agradecida por esse encontro com a escrita de Arnaldo Jabor, e espero continuar dividindo essas experiências de leitura com o meu garoto e lendo para ele os textos que me arrebatam. Que venham outros finais de tarde com muitos textos inspiradores, baby. Que venham outros finais de tarde/noites/madrugadas com café, cerveja, música, amor e literatura. Sigamos juntos viajando pelo mundo da literatura, meu bem. Obrigada por nos proporcionar esses momentos únicos, Arnaldo Jabor. Obrigada por suas crônicas afetivas. Obrigada por tornar nossos dias mais leves e poéticos.

 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).