Valério Mesquita

17/02/2022 11h33
 
ENCONTRO INESPERADO
 
Ela ainda guardava uma beleza aflita que não morre. De
tudo quanto se esquece não pude esquecer o amor adolescente que
havíamos vivido. Os seus braços ainda faziam lembrar meus cansaços e
desatinos. Aquela mulher na fila comum do supermercado parecia que
estava no estaleiro do tempo, estacionada nos 50 anos como se tivesse
dissolvido a amargura das coisas. Os óculos escuros escondiam
profundezas abissais de prazeres irrevelados e naufrágios conjugais. Ali
estava plantada como uma árvore morta com raízes na minha alma. Ela que
se tornara ausência em mim desde algum tempo, numa tarde morta de
setembro. Não pude conter o ciúme retrospectivo. Apossou-se de mim, não
mais que de repente, a fria solidão dos despossuídos. A poeira do tempo
começara a lacrimejaros olhos de perdidas lembranças. Onde, aquele corpo
juvenil de dançarina de mambo, rosto de Silvana Mangano e quadris de
Ninon Servilha? O bongô oculto da orquestra invisível de Perez Prado
cometia o milagre de resplandecer ali, as suas formas em movimento, à luz
do ocaso. Ah! Tanta imaginação fugidia e ela nem olhava prá mim! Não.
Ela não me vira. Com certeza. Não seria tão fingida. Outra surpresa me
estava reservada.
 
Como se tivesse saído da multidão dos seus personagens,
um jovem alto, louro, enlaçou-a num abraço afetuoso e mágico, fazendo
descer pelo declive sonhos e ilusões de tudo o que já fomos. Valeria a pena
dizer o nome de quem amei? Ou repetir a estrofe “de quem eu gosto, nunca
falo”?
 
Conhecia-a na noite perdida da memória do Pax Clube de
minha terra. Era a garota do baile. Isso é tudo como identidade e currículo.
 
Sai quando ela cruzou a porta e se enfiou no carro com o
jovem marido. Um riso antigo ainda pude colher, de soslaio, da boca
sensual e conhecida. O sol e o ruído, lá fora, despertavam-me para a
realidade. Tudo acontecia rápido e me impelia prosseguir na sobrevida da
lembrança que o tempo não desfez. Procurei o meu carro no
estacionamento solfejando o samba “Recado” que junto cantávamos
procurando inventar o nosso mundo. “Você errou quando olhou pra mim.
Uma esperança fez nascer em mim. Depois levou pra tão longe de nós, o
seu olhar no meu, a sua voz”... Brumas, nada mais...

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