Bia Crispim

25/03/2022 09h40

 

E O SEU CORPO NÃO SE TRANSFORMA, NÃO, ESTÁTUA?!

Nesses dois últimos anos tenho lido muito sobre corpos, gêneros, identidades, transidentidades e transgeneridades. Faz parte de um processo de autoconhecimento e de entender de que maneira as ciências sociais, as ciências psi, a medicina, a justiça e a sociedade leem, analisam, interpretam e interferem na vida de pessoas Trans. E é comum me deparar com pesquisadores, sobretudo cisgêneros, que falam sobre as mudanças, as transformações que ocorrem nos corpos Trans como se seus próprios corpos, ou os corpos das pessoas cisgênero de uma forma geral, não passassem por modificações.

 

Frases como “corpos que se transformam continuamente” aplicados aos corpos Trans parecem querer nos jogar dentro da caixinha das aberrações (como querem que sejamos), dos animais em metamorfoses, dos seres humanos “não humanos” porque nos transformamos em ETs, em monstros...  Paroooooooooooou! Nossos corpos se transformam porque é natural que qualquer corpo orgânico se transforme. Envelhecemos – e isso causa mudanças; nos exercitamos ou somos sedentários – e isso causa mudanças; por questões genéticas perdemos ou nos enchemos de pelos, perdemos elasticidade na pele; ganhamos peso, perdemos peso; celulites e estrias surgem ou desaparecem... São mudanças.

 

Porque além das questões do tempo, das questões físico-químicas e biológicas que impactam na transformação dos corpos de qualquer ser vivente, repito QUALQUER, ainda há a maneira como cuidamos ou não desses corpos, como os alimentamos, como os exercitamos, como os menosprezamos, como interferimos com exercícios em academia, com procedimentos estéticos, com medicamentos, com próteses, com enxertos, com lasers, com pigmentações... 

 

Mas, se essas mudanças ocorrem em corpos cis, tudo bem. É natural! É normal que alguém não esteja satisfeito com alguma coisa no seu corpo. É normal querer botar silicone. É normal fazer implante capilar. É normal refazer o nariz, fazer lipo, esticar as pelancas, aumentar os lábios, rejuvenescer a vagina, reduzir os seios, aumentar o pênis... É normal!!! 

 

Pois bem, se esse discurso de normalidade ou naturalidade cabe para os corpos cis, porque não podem ser aplicados aos corpos Trans? Só porque somos Trans? É esse o argumento para afirmar que as interferências médicas-cirúrgicas-estéticas feitas por pessoas Trans nos encaixam nas aberrações, na antinaturalidade, na não humanidade? São, somente, nossos corpos Trans “que se transformam continuamente”? Logicamente, não!

 

Quanta hipocrisia! Quanto preconceito! Quanta desinformação! Quanto protecionismo para o discurso que defende as mudanças dos corpos cis. Se por modificarmos nossos corpos, nós, pessoas Trans, nos tornamos aberrações (como querem que sejamos), vocês, pessoas cisgêneros, que já fizeram qualquer tipo de intervenção corporal, seja por dieta, seja por cirurgia... Sejam todes/as/os bem-vides/as/os ao clube das aberrações, ao clube dos monstros, ao clube dos antinaturais. Estamos no mesmo barco. Interferimos nos nossos corpos.

 

Finalizo a coluna dessa semana lembrando que meu corpo pertence a mim. Lembrando que cada um é dono e proprietário, locatário e usuário do seu próprio corpo. Lembrando que além das ações do tempo, nossos corpos podem, se quisermos e se tivermos meios para isso, ser modificados, ser melhorados. E qualquer intervenção que eu, pessoa Trans ou você, pessoa cis possa ou queira fazer em nossos corpos deve partir de uma necessidade nossa, de uma vontade nossa, de um desejo nosso e não para atender aquilo que os outros esperam, aquilo que os outros desejam.

 

Lembrando também aos pesquisadores, sobretudo os cisgêneros, de que disforias, de que as insatisfações com partes do corpo, de que a vontade de modificá-lo não é  característico ou exclusivo ou obrigatório de pessoas Trans, pelo contrário, a medicina estética foi desenvolvida para pessoas cis. A indústria de produzir aberrações, corpos não-naturais foi feita por e para as pessoas cis. Afinal, o “cistema” sempre invisibilizou os corpos Trans. Não é mesmo?!

 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).