Lívio Oliveira

Procurador Federal, membro da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, da União Brasileira de Escritores no Rio Grande do Norte e da Associação Sertão Raiz Seridó.

17/02/2025 16h40
Ainda existem os quintais
 
No Barro Vermelho ainda existem quintais. Na casa dos meus pais, numa rua que leva o nome de um antigo poeta, ainda há aquele quintal em que brinquei na infância. É certo que ele tomou uma nova forma, um novo arranjo, mudanças das coisas, mudanças das plantas, mudanças dos tempos. Mas ainda está lá. Um pouco reduzido, já foi maior. Foi feita uma construção que tomou quase metade da área. Mas ainda está lá, guardando lembranças, reafirmando a memória.
 
Há alguns anos, contemplei-o calado: o quintal. Enquanto meus pais, irmãos, esposa, cunhados, filhos e sobrinhos conversavam animadamente ou miravam e dedilhavam, sôfregos, os seus smartphones e tablets, eu olhava ao redor, recordando os feitos da minha infância e da minha adolescência. O meu forte resfriado me deixou meio sonolento e me colocou numa condição reflexiva, possibilitando uma viagem letárgica no tempo. Retornei a um quintal cheio de sonhos e de movimentos, a plenitude das aventuras num terreno que parecia um mundo imenso. E era.
 
Quando conheci o quintal havia um milharal em que podíamos nos esconder. Uma paisagem horizontal e compacta, em que o aparece-desaparece era o jogo preferido. Não sem alguma angústia. Aquela piscina vegetal já nos impunha o exercício do olhar e da atenção. E exibia a multiplicidade de hipóteses que a vida mesma nos impõe. Onde estamos agora? Onde estaremos daqui a pouco?
 
A maior atração do quintal foi mesmo a grande mangueira. A manga rosa que ela nos dava era suculenta. A teta sublimada em fruta. Uma fruta dulcíssima, carnuda, hipnótica, sensual, orgástica. E a mangueira dava às centenas. Os que ousávamos subir naquela árvore mágica contemplávamos todo o bairro e ainda uma parte do Alecrim, uma parte do Tirol e outra da Cidade Alta. Era o nosso mirante mais alto e ousado. Nosso arranha-céus mais fabuloso. Dali eu conversava com São Pedro, que olhava pra mim do alto da igreja que leva o seu nome, no Alecrim. E sonhava com um mundo maior que aquele onde eu estava. Mesmo sabendo que era um sonho ousado. Até mesmo porque aquele terreno, aquele quintal parecia um latifúndio onírico vasto, um mundo infinito. E era.
 
Naquele quintal, pude cair da mangueira, sofrer um bocado com a queda, mas me levantar, altivo, mesmo que temporariamente sem voz e sem fôlego. Assim como tem sido na vida. Ainda me levanto, apesar de umas escorregadas e uns belos tombos. Às vezes empurrado por outrem, às vezes por descuido próprio – o tombo. 
 
Mas ainda estou de pé. Estamos. O quintal ainda está lá. E estamos todos aqui. Mesmo que sem aquela mangueira secular e sem os cães com os quais adorávamos correr e nos jogar na areia, no barro encarnado, vermelhidão das feridas, vermelho da paixão e até de certas vergonhas. Mas, jamais a vergonha de sonhar. Sonhar com um mundo além-quintais. E sempre retornar para vê-lo, o nosso primeiro universo, onde transpusemos os primeiros obstáculos reais.
 
Quando havia a mangueira, quando eu estava em idade escolar, levava para baixo da copa da árvore fantástica uma mesinha retangular de clara fórmica, com os pés longos e pontiagudos. E uma cadeira preferida. Colocava os livros e cadernos sobre a mesa, uma caneta ou um lápis à mão e a inteligência à prova na cabeça povoada de sonhos. A mangueira, a mesinha e a cadeira não mais existem. Mantêm-se vivos apenas os sonhos. Apenas?! E o quintal ainda está lá, cada vez mais belo, cada vez maior e mais vivo, fora e dentro de mim.
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).