Coluna da SPVA
A Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do Rio Grande do Norte (SPVARN), é uma associação literária e artística de utilidade pública, democrática, sem fins lucrativos, com 27 anos de existência e 68 associados de importante atuação no meio cultural do Estado. Nesta coluna, dominicalmente os leitores serão contemplados com autores e autoras de diversos estilos e gêneros literários.
16/03/2025 05h32
Feito dia de domingo – Menino do Morro, por Lúcia Eneida Ferreira
Prezados leitores,
O texto da coluna da SPVARN desse domingo traz um conto muito bem escrito pela multiartista Lúcia Eneida, a qual é escritora, poeta, atriz, professora, declamadora e contadora de histórias. Eneida é nascida em Natal/RN. Graduada em Letras pela UFRN e pós-graduada pela mesma instituição. Publicou Confissões em prosa & versos (Ed. CJA, 2016); Maria Queiroz Baía – Exemplo de superação e luta contra o preconceito (Ed. Offset, 2019); Enquanto a chuva não vem – contos (Ed. B3S, 2021); Isa e o baú de livros – infantojuvenil (Ed. B3S, 2023). Participou como coautora de 48 antologias e coletâneas. É membro das seguintes agremiações literárias e artísticas:, Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN – SPVA/RN, União Brasileira de Escritores – UBE/RN, Mulherio das Letras Nísia Floresta, Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares – ALAMP, além de integrar o Grupo de Teatro Boca de Cena.
Solto o verbo
Em um pilar de lembranças
Escada côncava e convexa
Revivendo o hoje
Com os traços do ontem
(Lúcia Eneida Ferreira)
Passava das 20 horas quando o Dr. José Brito da Silva atendeu o último paciente no seu luxuoso consultório. Estava exausto. Na movimentada Avenida Hermes da Fonseca, finalmente em seu carro, ligou o som e ouviu: “Preta, preta, pretinha, eu ia lhe chamar enquanto corria a barca...”. Aquela música ecoava em seus ouvidos e ele foi buscar, nos seus arquivos da memória, a velha infância e adolescência passadas no Morro de Mãe Luíza, em Natal, no Rio Grande do Norte, quando era apenas Zé, Zé de Maria de Brito.
Lá na comunidade ninguém usava sobrenome, e para distinguir um Zé do outro era só acrescentar de quem era filho. Portanto, Zé era filho de Maria que era filha de Brito. Também não carecia de endereço, pois todos se conheciam e até o carteiro, quando chegava com correspondência, lia o nome do destinatário e ia à viela onde se localizava o barraco.
O pai de Zé nunca mais deu notícias desde que se embrenhou para São Paulo à procura de serviço, deixando Dona Maria com sete filhos para dar de comer. Era no trabalho de doméstica que ela conseguia o sustento da família.
Zé amava o lugar em que vivia e a escola pública onde estudava, localizada na comunidade. Havia um cardápio bem variado no lanche da escola para cada dia da semana: arroz de leite, sopa de fubá, mungunzá, cuscuz com ovos, papa de aveia. Ele comia e repetia para ficar almoçado pois a comida era escassa em casa. Saía lambendo os beiços e de bucho cheio. Eta comida danada de boa!
Na parte mais alta do morro, perto do farol, embaixo dos coqueiros, a garotada se juntava para apreciar o mar; e quando a maré estava baixa, desciam as escadarias para jogar uma “pelada” na praia e depois se deliciar nas águas mornas. Numa dessas aventuras foi que Tiago de Francisca de Bidiu foi engolido pelas ondas revoltas da praia. O corpo foi encontrado dois dias depois, na Praia da Redinha, bem longe dali. Após esse trágico acidente, Zé não pôde descer com os amigos. Só aos domingos, com a mãe.
Para compensar as tardes sem praia, Maria trazia muitas revistas em quadrinhos, velhas, que a patroa lhe dava para entreter as crianças, e assim nosso garoto arteiro foi descobrindo o prazer de ler. Dos quadrinhos para os livros só precisou de um empurrãozinho da professora de Língua Portuguesa. Assim, foi pegando emprestado da biblioteca da escola e leu todos os livros de José de Castro, Pedro Bandeira, Jania Souza, Marcos Campos, Luís Galdino; depois passou a ler, com a avidez dos obstinados, Machado de Assis, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Lygia Fagundes Telles, Érico Veríssimo, Tereza Custódio, Jorge Amado, Ana Cláudia Trigueiro, Flávia Arruda, dentre outros.
Nessas viagens ao redor do mundo através dos livros, o garoto traquina sonhava conseguir ingressar na Escola Técnica Federal. “Por que não?” Dizia Zé à sua mãe: “Lá na rua da praia tem uma professora que prepara os alunos para a ETFRN e quem estuda com ela é aprovado”. A mãe pegou na palavra e do jeito que o garoto estava, levou-o. Foi assim, vestindo apenas um calçãozinho e um chinelo surrado nos pés que Zé conheceu a professora Baía. A professora não se assustou com os trajes de Zé, mas o garoto se assustou com a professora. Ele não imaginava que Dona Baía fosse uma pessoa assim... Seus olhos pararam firmes procurando os pés da professora e não os encontrou. Ficou magnetizado como um sapo que espera o momento certo para fisgar a mosca. Naquele transe hipnótico, com a boca aberta contemplativa e com o queixo literalmente caindo na mistura de espanto, medo e admiração, ele foi subindo o olhar bem devagar para perceber que a mulher que estava à sua frente também não tinha pernas. Não se conteve, levantou a saia da professora e só assim entendeu que era apenas um par de coxas que a sustentava. Recebeu um beliscão da mãe e quase falou um palavrão, mas se conteve. Engoliu o choro e acordou para a realidade. Depois do susto, Dona Maria explicou: “Professora Baía, meu filho está com umas ideias na cabeça. Quer estudar no Instituto Federal para fazer o Ensino Médio e um dia ser doutor e lá no morro todos falam que quem estuda com a senhora, passa, mas eu não tenho condições de lhe pagar”. A professora acalmou a mãe com um sorriso: “Não se preocupe, senhora, o pagamento será a aprovação do seu filho. Fico muito feliz quando parte do aluno o desejo de aprender, de ser aprovado e de ter um futuro promissor. Esse é o meu maior pagamento.” Dona Baía anotou o nome do novo aluno na folha de chamada. Que letra perfeita e desenhada ela tinha! Mas o garoto estranhou que ela escrevia com a mão esquerda. Foi quando se deu conta de que a professora também não tinha o braço direito. No decorrer das aulas, em comunhão com o sofrimento alheio, ambos se entendiam e tanto a professora quanto o aluno tinham certeza de que a vida dele ia mudar.
Zé saiu do morro, mas o morro não saiu de Zé e, até hoje, quem chegar ao Centro Comunitário do Morro de Mãe Luíza todas as quartas-feiras para se consultar, será atendido pelo Dr. José Brito da Silva, médico endocrinologista, que faz um trabalho voluntário naquela comunidade, mas todos o conhecem como Zé de Maria de Brito. É assim que ele faz questão de ser chamado pelos moradores.
ATÉ BREVE!
Conexões poéticas SPVA:
E-mail: sociedadedospoetasvivosrn@gmail.com
Instagram: @spvarn.oficial
Facebook: SPVA DEBATE LITERÁRIO VIRTUAL
Youtube: SPVARN
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).