Maurício Rands
Maurício Rands é advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
22/07/2024 08h28
O lado ruim do homo sapiens
A campanha do Partido Republicano americano tornou-se um culto à personalidade de Trump. Que se examine a sua personalidade, ora pois. Leio n’O Globo a crônica do escritor angolano Agualusa. Ao lembrar as mentiras, escândalos, micos, crimes, egocentrismos, ressentimentos, ódios e discriminações de Donald Trump, Agualusa pergunta como uma personalidade dessas pode atrair tantos admiradores com seus tampões nas orelhas. E indaga se, depois de termos assistido o colapso da União Soviética, não estamos prestes a testemunhar o dos EUA. Não vou a tanto. Mas penso que estamos assistindo o declínio moral de um povo que foi capaz de tantas conquistas. Políticas, econômicas e científicas. Mas também morais. Esse mesmo povo, por sua maioria, hoje está disposto a votar num ser humano que salienta em sua personalidade os piores e mais abjetos atributos do homo sapiens. Atributos que, em todos nós, podem despontar. Eis que, em nossa bagagem genética, trazemos dentro de nós virtudes e defeitos muitos. Mas cujo desenvolvimento vai depender de incentivos, freios, circunstâncias e constrangimentos materiais que nos cercam. E também da visão de mundo, dos valores e ideologias que escolhemos. Nossas opções éticas e esforços de aperfeiçoamento são cruciais para que logremos frear os defeitos e fomentar as virtudes da nossa herança genética e cultural. Em gente como Trump, esses freios e incentivos parecem combinar-se para produzir o que há de pior na natureza do sapiens.
Durante a corridinha matinal na Jaqueira, ouço pela Rádio BBC um documentário sobre o povo Romani, os ciganos. Escravizados no Leste Europeu, muitos foram assassinados por Hitler em campos de concentração do Holocausto. Ouço também que já chegam a 38.798 os palestinos assassinados pela ofensiva de Israel em Gaza. Não consigo deixar de me impressionar com a complacência de tantos com os crimes de guerra praticados por Benjamin Netanyahu. Inclusive de Biden e parte do establishment do Partido Democrata. A deslustrar a boa reação que ele soube articular com os países da Otan para frear as guerras expansionistas de Putin, saudoso da Grande Rússia dos czares. O lado ruim do homo sapiens parece desabrochar por toda parte. Muitos dos que hoje condenam grandes facínoras do passado, como foram Hitler, Mussolini e Stalin, hoje passam pano para os seus sucessores na atual conjuntura.
No Brasil, há quem, sob pretexto de defender a vida do feto, seja a favor de encarcerar uma adolescente estuprada que necessite abortar. São os mesmos “defensores da vida” que aplaudem os deputados da bancada da bala que excluíram as armas de fogo do imposto do pecado. São também os mesmos que acham que Trump merece voltar à presidência porque levou um tiro de um maluco que pôde comprar um poderoso rifle AR-15 porque Trump e seu partido defendem o amplo acesso às armas.
As agências de inteligência dos EUA (CIA e FBI) e o chamado Relatório Robert Muller concluíram que Trump foi eleito em 2016 com a ajuda do governo russo e de agências russas, através de ataques cibernéticos e falsa propaganda disseminada nas redes. Afinal, será coincidência que Trump admire Putin e tenha se beneficiado da sua ajuda para vencer a eleição de 2016? No episódio da guerra Israel-Hamas, o apoio de Biden e das potências europeias a Netanyahu aumentou o fosso entre o Ocidente e os povos do Oriente. É difícil supor que o apoio de Trump, fosse ele presidente dos EUA, seria ainda mais desabrido? E que, por consequência, esse fosso seria ainda mais aprofundado?
Os planos de Trump para um eventual novo governo passam pelo reforço às indústrias das armas e do petróleo, assim revertendo os esforços desarmamentistas dos democratas e a transição energética avançada por Biden. Passam ainda pela cruel deportação de imigrantes, separando famílias e cancelando sonhos análogos aos dos primeiros imigrantes que fizeram a América ser “great”. Sem contar que suas políticas protecionistas vão encarecer os fluxos de comércio e de investimentos na economia de todo o planeta. Com impacto em nossos quintais. Nada obstante, muita gente boa e honesta, aqui como lá, deixa-se seduzir por um candidato que já provou estar à altura de líderes moralmente deformados como Hitler, Mussolini, Stálin e Netanyahu. Essa cegueira não será por falta de informação sobre o que Trump representa para os EUA e para o planeta. O jornalismo profissional está aí para nos ajudar a entender o que se está passando. Mas pode ter a ver com uma certa viseira que dificulta a lucidez dos ideologizados. Tomara que não seja por identificação com os (des)valores expressos por líderes como Trump e Netanyahu. Nem que imaginem que um atentado terá sido capaz de transformar uma personalidade tão doentia.
Maurício Rands é advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
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