Maurício Rands

Maurício Rands é advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

24/02/2025 08h14
A anistia é inconstitucional e politicamente inviável
 
Alguns projetos em tramitação no Congresso Nacional propõem anistiar os participantes em atos contra o estado de direito democrático. Um deles, o PL 2858/2022, do e ex-líder do governo Bolsonaro Major Vitor Hugo (PL-GO) concede anistia a todos os que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional do dia 30/10/2022 ao dia de entrada em vigor da lei. No § 1º do art. 1º, o PL estende a anistia aos crimes políticos ou com estes conexos e eleitorais. Parece destinar-se ao ex-presidente Bolsonaro. Atualmente, esse PL aguarda na Câmara a criação de Comissão Especial para analisar a matéria. Outro, o PL n° 1068/2024, concede anistia aos envolvidos nos atos de 8/01/2023 e restaura os direitos políticos dos cidadãos declarados inelegíveis em face de atos relacionados às Eleições de 2022, de inciativa do senador Marcio Bittar (UNIÃO/AC), tem como relator o senador Humberto Costa (PT-PE), na Comissão de Defesa da Democracia. Para o autor do PL 1068, o objetivo é "resguardar esses direitos e dar um fim à perseguição que vem sendo perpetrada contra inúmeros cidadãos brasileiros, sejam políticos ou não, por conta de suas opiniões e posicionamentos ideológicos".
 
"Anistia é a exclusão, por lei ordinária com efeitos retroativos, de um ou mais fatos criminosos do campo de incidência do Direito Penal. A clemência estatal é concedida por lei ordinária editada pelo Congresso Nacional (CF, arts. 21, XVII, e 48, VIII)." Essa causa de extinção da punibilidade destina-se, em regra, a crimes políticos (anistia especial), abrangendo, excepcionalmente, crimes comuns. Abrange fatos, e não indivíduos, embora possam ser impostas condições específicas ao réu ou condenado (anistia condicionada). Divide-se em própria, quando concedida anteriormente à condenação, e imprópria, na hipótese em que sua concessão opera-se após a sentença condenatória. Pode ser também condicionada ou incondicionada, conforme esteja ou não sujeita a condições para sua aceitação. A anistia tem efeitos ex tunc, isto é, para o passado, apagando todos os efeitos penais. Rescinde até mesmo a condenação." Como ensina Cleber Masson (Direito Penal: Parte Geral, E-book. ISBN 9786559649501).
 
Avanço teórico do neoconstitucionalismo, a Constituição hoje é vista como um sistema de princípios e regras. Os princípios geralmente estão explícitos no texto. Mas existem também os princípios constitucionais implícitos. Que são os que, embora não expressos diretamente no texto constitucional, são extraídos do conjunto de dispostivos e valores que a fundamentam. São exemplos de princípios constitucionais implícitos: princípio da proporcionalidade (a interpretação e as medidas estatais devem ser adequadas, necessárias e proporcionais aos fins pretendidos); princípio da segurança jurídica (garante a estabilidade e previsibilidade das relações jurídicas, assegurando que os cidadãos possam confiar nas leis e nas decisões do Estado); princípio da dignidade da pessoa humana; princípio da segurança jurídica e princípio da supremacia da constituição. Para muitos juristas, o princípio do estado democrático de direito também se constituiria num princípio implícito do nosso sistema constitucional. Por isso que os seus elementos constitutivos, definidos nos incisos II (voto direto, secreto, universal e periódico), III (separação dos poderes) e IV (direitos e garantias individuais) do art. 60, § 4º, da CF/88, são cláusulas pétreas.
 
Uma das teses em disputa sobre a constitucionalidade desses projetos de anistia, a que me perfilho, é a de que seria inconstitucional a anistia aos que praticaram atos incursos nos artigos 359-L (crime de tentativa de abolição do estado democrático de direito) e 359-M (tentativa de golpe de estado). O ex-presidente, seus ministros, generais e almirantes estão sendo processados por esses crimes. Ou seja, por crimes que atentam contra princípios implícitos da Constituição, como o são o do estado democrático de direito, o da proporcionalidade, o da supremacia da Constituição e o da segurança jurídica. Por isso, uma lei que anistia quem está incurso nesses crimes seria inconstitucional.
 
A tese antagônica sustenta que a CF/88 foi explícita quando falou dos casos em que a lei não pode conceder o perdão. Foi quando, no art. 5º, inciso XLIII, disse que não seriam susceptíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os crimes hediondos. Sem menção ao ataque ao estado de direito. E, no inciso XLIV, definiu como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático. Para essa tese, a CF/88 não incluiu o crime de ação de grupos armados (XLIV) entre os que não podem ser objeto de graça ou anistia. Ela definiu as hipóteses desse inciso XLIV apenas como inafiançáveis e imprescritíveis. Essa tese aduz ainda que a deliberação sobre a anistia é juízo político do parlamento. Não susceptível de controle de constitucionalidade pelo STF, exceto quanto ao procedimento.
 
Caso o Congresso Nacional aprovasse um desses projetos de lei de anistia, a questão seria levada ao STF via uma das ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC, ADPF, MI). O STF poderia ser chamado a julgar a constitucionalidade à luz dos princípios e regras da CF/88. Penso que a melhor interpretação seria a que buscasse preservar os princípios explícitos e implícitos do sistema constitucional adotado em 1988. Entre esses princípios, o do estado democrático de direito, que fundamenta todo o sistema. O STF poderia utilizar uma das ferramentas mais praticadas na jurisdição constitucional: a interpretação conforme à Constituição. Seria dada uma interpretação conforme à Constituição aos incisos XLIII e XLIV do art. 5º para interpretá-los de modo a dizer que esses dois preceitos não permitem a anistia de crimes contra o estado democrático de direito. Ou seja, que esses incisos impõem a decretação da inconstituicionalidade da anistia aos crimes dos artigos 359-L e 359-M do CP por força dos referidos princípios implícitos e explícitos.
 
Em caso análogo, o STF já se pronunciou nessa direção. Quando julgou a ADPF 964, em 10/05/2023. Esse caso tratou da constitucionalidade do decreto presidencial que concedeu graça (indulto individual) a Daniel Silveira, que havia sido condenado pelo STF a 8 anos e 9 meses de prisão por ataques às instituições democráticas e incitação à violência. Apenas os mministros André Mendonça e Nunes Marques votaram pela constitucionalidade do decreto. Todos os demais entenderam que o ex-deputado não poderia receber a graça por ter cometido crimes contra o estado de direito democrático. O decreto também foi considerado inconstitucional por desvio de finalidade.
 
Provavelmente esse debate não chegará ao STF. As ações penais em curso no STF contra o ex-presidente e seus seguidores examinam a prática de atos de uma cadeia complexa de atos que materializem tentativas de abolição do estado democrático de direito e de golpe de estado. Atos que agora vão se tornando do conhecimento público. Por isso, o Congresso dominado pelo Centrão, em seu juízo político, não vai se expor perante a opinião pública. Vai preferir o de sempre. Manobrar para extrair vantagens e poder. Ainda que o Congresso aprovasse a anistia, o presidente poderia vetá-la. Ademais, a tese de que a anistia pode pacificar o país pode ser lida pelo seu inverso: para a pacificação, importa não sinalizar que serão perdoados futuros ataques às instituições. Mas, se a anistia fosse aprovada, provavelmente o STF determinaria a sua inconstitucionalidade. Essas são as razões por que a anistia proposta pela ultradireita populista não deve prosperar.
 
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
 
 

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