Maurício Rands

Maurício Rands é advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

30/12/2024 08h51

O combate à criminalidade e o punitivismo populista

O crime organizado e a violência nos aterrorizam. Governos existem para solucionar problemas como esse. Todos queremos uma polícia rigorosa. Mas nem todos queremos uma polícia arbitrária. Porque não se acaba com o crime cometendo outros crimes. É fato que o país vem perdendo a batalha contra a violência. Por isso, cresce o apelo ao populismo punitivista. Parte da opinião pública aceita a ideia de que o policial mate mesmo sem ser em legítima defesa. O lema "bandido bom é bandido morto" rende muitos votos. 

O governador Tarcísio de Freitas, de SP, tem se beneficiado desse apelo populista. Nomeou secretário de segurança um policial linha duríssima. Foi eleito e governou pousando de linha dura. Sua liderança quase a sinalizar uma "licença para matar". Como seu mentor ex-presidente, faturou alto num eleitorado inseguro fazendo o gesto da arminha. No final do ano, o Brasil viu imagens de covardia da polícia paulista. Um policial jogou da ponte o adolescente flagrado. Outro atirou nas costas de um delinquente que furtara detergente em um supermercado. A operação da PM de SP na Baixada Santista em 2024 ficou marcada por denúncias de execuções sumárias, abuso de força e falta de transparência nas investigações. O MP de SP estima em mais de 56 as vítimas fatais da operação. Antes, o governador havia se recusado a implantar as câmeras corporais para os policiais. Desgastado por tanta violência de sua polícia, resolveu recuar na retórica. Passou a dizer que errara na rejeição ao uso das câmeras. Mas não redefiniu princípios para sua polícia. Sequer trocou o secretário linha dura.

O governo federal parece ter se dado conta de que o combate à criminalidade é assunto sério demais para ser deixado à ação isolada dos governos estaduais. O ministro da justça discute uma PEC para aperfeiçoar o sistema de segurança pública, com foco no combate ao crime organizado, na modernização e na valorização das polícias. Propõe redifinir as atribuições da PF e da PRF, e aumentar  os recursos para o Fundo Nacional de Segurança Pública. Talvez nem precisasse de uma PEC, visto que já está em vigor a Lei nº 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) propondo integrar as ações dos órgãos de defesa social nas esferas federal, estadual e municipal. Ao invés de enfrentar a oposição de governadores conservadores como Ronaldo Caiado, Tarcísio de Freitas, Romeu Zema e Cláudio de Castro, além das chantagens do Parlamento, o governo federal poderia se concentrar na implementação das leis já existentes. Como fez com o Decreto nº 12.341, de 24/12/24, que disciplina o uso da força pelas polícias, com foco na eficiência das ações, valorização dos profissionais e respeito aos direitos humanos. O decreto disciplina o uso de armas de fogo e instrumentos não letais, as abordagens, as buscas domiciliares e a atuação dos policiais penais nos presídios. A ideia é que o recurso à arma de fogo seja medida de último recurso. Se o uso da força resultar em ferimento ou morte, a ocorrência deve ser detalhada. A ação policial não deverá discriminar qualquer pessoa por cor, raça, etnia, orientação sexual, idioma, religião, nacionalidade, origem social, deficiência, situação econômica, opinião política ou de outra natureza. Para que os estados recebam os repasses de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional terão que obedecer às normativas do decreto. Condicionalidade normal em outros programas, como o do Bolsa-Família. Por isso, constitucional.

Nesse quadro, o STF acaba de entrar no tema. Decisão do presidente Barroso na suspensão de liminar nº 1.696 adequou decisão anterior que determinara o uso obrigatório das câmeras corporais pelo PMs de SP. A nova decisão esclarece que as câmeras devem ser obrigatórias em alguns tipos de operações com maior risco e propensão ao uso da força, em operações de grande porte e naquelas que incluam incursões em comunidades vulneráveis. Igualmente quando as operações sejam deflagradas para responder a ataques praticados contra policiais militares. Pela decisão, as câmeras disponíveis deverão ser estrategicamente distribuídas para regiões com maior índice de letalidade policial.

O combate à violência é hoje um dos maiores problemas que afligem o nosso povo. Demanda ações de todos os poderes, das três esferas da federação. Seria muito bom se o tema não fosse enfrentado como arma política. E que as soluções não flertassem com o populismo punitivista que, além de não resolver o problema, ameaça outros direitos e conquistas civilizatórias. Quando se permite que o agente policial acuse, julgue e execute a pena, inclusive a de morte, as primeiras vítima são a liberdade e a dignidade da pessoa humana. Algo próprio ao autoritarimo e aos regimes totalitários

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

 


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