Lívio Oliveira

Procurador Federal, membro da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, da União Brasileira de Escritores no Rio Grande do Norte e da Associação Sertão Raiz Seridó.

10/02/2025 08h59
Minha homenagem a Jácio Torres
 
 
 
Pretendo que o presente texto não seja delimitado pela tristeza, mas confesso que eu não passaria bem a semana, nem a vida inteira pela frente, se não escrevesse palavras que pudessem minimizar a dor sentida pela perda do querido Jácio Torres, ícone cultural natalense, que mantinha o essencial sebo Catalivros há décadas (hoje, sob o comando da sempre dinâmica companheira, Vera, e do filho batalhador, Ramon).
 
Nessas horas, parece até mesmo que a gente desaprende a arte de escrever. Tudo fica meio obnubilado diante de tantas lembranças, memória misturada e caótica, pedindo para que colhamos as melhores frases que passam pelo pensamento. Não é fácil. Jácio Torres era uma figura humana extremamente querida, imprescindível mesmo. É tanto que passei um tempo sem ir a uma das três unidades do Catalivros, aquela da avenida Prudente de Moraes, logo após eu ter descoberto que Jácio estava muito doente e teria que fazer um severo tratamento, sem frequentar o lugar de que ele mais gostava, em meio a tantos livros, discos e objetos de toda espécie.
 
Só descobri a gravidade da doença após ter ido num dia em que ele não pode me atender, ficando numa sala interna do sebo, descansando na penumbra. Naquele final de tarde, já escurecendo sobre Natal, a explicação que recebi foi a de que havia comido algo que não lhe fez bem no domingo, havia se excedido. Que fosse somente isso! Senti ali que o meu bom amigo tinha sofrido um forte abalo na saúde. E só retornei à unidade (hoje, assumida por Ramon), após a partida definitiva de Jácio, sem que eu deixasse de transmitir as minhas preocupações e solidariedade, enquanto durou o tratamento, a Vera e a Ramon.
 
Sinto-me, após a sua partida, justamente na obrigação de sempre retornar e superar a sua ausência, agora definitiva. Por várias razões, como a de recordar e retomar aqueles momentos de descobertas valiosas de obras que eu procurava como quem procura um sonho em meio às nuvens. Quero recordar também as belas lições de doçura, gentileza, respeito e grandiosidade discretíssima de Jácio. Havia até uma certa timidez, mas sempre uma comunicação eficaz e agradável. Jácio era honesto e sem ambições desmedidas nas negociações, não tinha nenhum laivo capitalista de enriquecimento fácil, antes buscava satisfazer a todos que compareciam ao seu estabelecimento e dava o preço justo à peça que punha em oferta.
 
Jácio cooperava com o desejo de cada pescador de pérolas, de cada pesquisador angustiado, de cada colecionador ansioso que passava pelo Catalivros. Eu o conhecia há décadas. Acredito que a primeira vez que o vi foi quando fez uma negociação de livros com o meu pai e foi nos visitar na rua Segundo Wanderley, no Barro Vermelho. Acredito que Jácio morava e negociava no Alecrim, nessa época. Vou até perguntar mais a Vera, a Ramon, a Jailton (seu irmão, que muito me tem auxiliado também) e a Dedei (colaborador antigo do Catalivros) acerca da história de vida e do empreendimento de Jácio. Quero saber mais sobre essa personalidade muitíssimo importante para a cena cultural de Natal e do Rio Grande do Norte (que também serviu muito a outras partes do Brasil, vez que era procurado por muitos turistas e intelectuais de outras plagas).
 
Depois, Jácio e Vera (mais recentemente, o filho Ramon) se estabeleceram comercialmente em diferentes endereços, com a criação de três unidades, tendo superado até o incêndio implacável de uma sede anterior. Parece-me que serão reduzidas a duas, com a passagem de Jácio para o plano espiritual. Serei fiel ao legado de Jácio, sem dúvida alguma. Continuarei buscando os pequenos bens que trazem alegria e saber e estarei, com ânimo, lembrando dos momentos bons e felizes de diálogo com aquele semeador de utopias e de realizações pessoais.
 
Na fase imediatamente anterior à revelação da doença de Jácio para a cidade, eu estava sempre à busca de vinis de música clássica, destacadamente de Villa-Lobos e as gravações em LPs da Deutsche Grammophon. Também pesquisei muito sobre o nosso único potiguar Presidente da República, João Café Filho. Eu me lembro que Jácio me dava privilégios que talvez eu não merecesse. Guardava materiais importantes para que eu pudesse analisar se eram do meu agrado, interesse, necessidade. E dizia uma frase interessante quando eu decidia levar para o sebo algum livro ou disco duplicata, que não me interessavam mais: “– Lívio, as coisas circulam!”. Essa frase enfática reduzia a minha inquietação ou culpa íntima pelo descarte.
 
Ademais, Jácio também mantinha um acervo personalíssimo em casa. Era um amante dessas “coisas que circulam.” Se não fosse, não transmitiria tanto amor ao lidar com elas. Tive acesso a algumas das preciosidades que mantinha em sua residência no bairro de Morro Branco. Muitas vezes, Jácio decidia que passariam ao meu acervo, a valores justos, porque considerava as minhas pesquisas importantes e até prioritárias. 
 
Eu nunca consegui e nem conseguirei agradecer à altura do homem bom e do intelectual discreto que Jácio foi, mas escrevo essas linhas para os que ficam aqui, na pescaria de pequenas coisas amorosas que existem em meio aos sebos, com muitas saudades de Jácio Torres, merecedor de todas as homenagens públicas, além das particulares, dos que tiveram a rica e inolvidável oportunidade de conhecê-lo.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).