Lívio Oliveira
Procurador Federal, membro da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, da União Brasileira de Escritores no Rio Grande do Norte e da Associação Sertão Raiz Seridó.
24/02/2025 11h02
Algaravia dentro
Faço caminhadas no bairro em que hoje moro. Não têm o mesmo sabor das caminhadas no bairro da minha infância, o Barro Vermelho. Sinto até alguma inveja quando amigos me contam ao telefone sobre os seus passeios que restabelecem o roteiro daquele bairro. Não tenho muito o que fazer contra essa minha realidade, a não ser caminhar do meu bairro até o Barro Vermelho. Se não consigo fazer isso fisicamente, faço a pequena viagem dentro da minha mente, em meio às algaravias íntimas e o olhar para aquele menino que ainda sobrevive dentro de mim, libertando-se vez ou outra e seguindo por estradas inimagináveis, subindo em árvores, caindo delas e levantando, como tem sido na vida inteira.
Faço silêncio ao meu redor, antes de conversar pela milésima vez com o São Pedro que fica lá no alto da igreja, já no Alecrim, pertinho do Colégio das Neves, onde vivi as experiências apaixonadas e os olhares se dirigiam em êxtase para os corpos em formação das meninas lindas, em branco e azul da farda colada ao corpo. O santo me responde que ainda é hora de não falar, de escrever tudo num caderno como aqueles do colégio, com um arame em espiral. Vou tomando notas e ouvindo tudo. Tanta gente falando...melhor eu ficar quieto, em silêncio, enquanto dizem e ditam tudo. E eu anoto as sí-la-bas, fazendo escanções, tentando poemas, tentando algo dentro da mente, que parece ter esvaziado.
No coração sempre tenho algo, o que é bem diferente quando busco as razões. Sou movido para dentro desse “comboio de cordas” pessoano. Sou tragado. Não vislumbro possibilidade outra e prossigo, mesmo que doa fundo, mesmo que os movimentos do coração só me levem para um passado. Sou um amante retroativo, não penso em amores futuros, só os que tive e os que tenho. Os meus filhos realizam os sonhos de ter sido. E vão além, que é o que eu realmente desejo. Ser superado pelos filhos e guardar as minhas cicatrizes num baú a que somente eu possuo acesso.
O que me sossega mesmo é a algaravia dos pássaros lá embaixo, na praça linda e que possuiu dois nomes. Uma praça que é inaugurada mais de uma vez é uma praça lembrada. Poucas são aqui, na minha cidade cheia de sol e de luz e de trevas da razão. Tudo é bom, diferentemente da canção que Caetano deu para Roberto. Tudo é bom porque parece ser. Só os inquietos, como sou, importam-se com o que é profundo e que termina machucando, provocando dor que sobe pela pele. Não aconselho. Apesar de tudo, de todo esse tempo diferente, estranho, com micro-organismos se instalando nos corpos das pessoas e rasgando tudo dentro, aqui fora ainda há muita luz solar e ventos, que até movem uns moinhos gigantescos, mas com menos charme do que os que Cervantes colocou diante de Dom Quixote.
Prossigo nessa luta diária contra e a favor das palavras. São elas que me dizem. Delas tiro o proveito de viver algo criativo e sonhar, sonhar sempre. As duas palavras, “barro” e “vermelho”, talvez sejam tão fortes dentro do meu interior fraco, que não as evito. Apenas as observo e as perscruto, numa poltrona diante da ponte, aquela ponte que leva o sagrado nome de Newton Navarro. Sento-me aqui e busco alcançar o horizonte após ela, enfiado nesta poltrona parecida com a “Nuvem” de Pablo Neruda em Valparaíso. Parece que aguardo um barco imenso, como o que levava o rinoceronte de Fellini: “E la nave va”.
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