Lívio Oliveira

Procurador Federal, membro da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, da União Brasileira de Escritores no Rio Grande do Norte e da Associação Sertão Raiz Seridó.

Magistrado de fibra longa

17/03/2025 11h44

Magistrado de fibra longa

 

Recebi das mãos de um grande amigo e colega da Advocacia da União, Rodrigo Passos Pinheiro, um enxuto e rico livro que fala sobre um seu bisavô materno.

 

Trata-se de “Reminiscências – Centésimo Aniversário de Félix Bezerra de Araújo Galvão” (homem nascido em 18 de maio de 1884, em Acari/RN; e falecido em Natal, a 22 de outubro de 1984, aos 100 anos de idade). A obra escrita acerca do desembargador Félix Bezerra, pelo filho Dagoberto Félix Bezerra de Araújo Galvão, foi publicada pela Gráfica do Senado Federal em 1984, por autorização do Senador Dinarte Mariz e apoio de Moacyr Duarte.

 

Apesar de somente ter chegado às minhas mãos num desses dias de 2025, considero que é um dos livros que mais me alegraram dentre as leituras do ano iniciado, tendo em vista os ensinamentos perenes, ao se analisar a vida de um grande personagem, uma especial personalidade de origem seridoense e importância fundamental para todo o Rio Grande do Norte.

 

 

Créditos: Lívio Oliveira 

 

É com prazer que vou passando as folhas, em que se expressa uma vida dedicada à causa da Justiça e através da qual se demonstra um caráter acima da média, como pouco se vê atualmente. Um homem firme, convicto e que jamais negociava com as suas íntimas convicções, destacadamente aquelas sobre a distribuição da Justiça. Educado com os rigores da época, nunca hesitou com relação aos seus valores. Como o autor diz no livro, Dr. Felu (assim conhecido entre os mais íntimos), possuía “o valor de um autêntico e intrépido sertanejo”.

 

Estudou Direito no Recife e no Rio de Janeiro. No Rio, foi partidário de Rui Barbosa, tendo recebido procuração do sábio jurista para representá-lo na disputa com Hermes da Fonseca, em 1910, na cidade de Palmira, hoje Santos Dumont. Voltando ao Rio, concluiu a sua formação em Direito e tomou o caminho do retorno a Natal.

 

Teve coragem física e cívica em demasia. Chegou a se embrenhar nas veredas do Seridó na luta contra o cangaço (banditismo que algumas vezes se travestia de um charme incompreensível). E foi um homem que fez boa história no exercício da promotoria (foi o primeiro Promotor Público de Acari) e também como magistrado, no exercício do qual chegou ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, nomeado em 21 de março de 1994 para a vaga do saudoso Desembargador Vicente de Lemos Filho. Vale lembrar que, em 31 de dezembro de 1947, foi eleito Presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.

 

Uma das curiosidades do livro relata uma situação em que o Dr. Felu foi fazer a barba numa barbearia de São José de Mipibu – tinha pressa para se dirigir a Acari – e o barbeiro era um que havia sido acusado por ele, então Promotor Público, “pelo crime de ferimentos graves a navalha”. Alguém pode imaginar a cena que se seguiu? O Dr. Félix se sentou e aguardou o barbeiro afiar a navalha para o trabalho requerido. Como precaução, manteve a mão no punho da arma de fogo, que estava na cintura. E o barbeiro, após concluir o trabalho limpo, ainda chegou a dizer que Dr. Félix tinha mesmo era razão, por ocasião do julgamento. A situação de risco foi superada.

 

Era um homem reto, forte e também sensível, telúrico.

 

Numa das homenagens que recebeu em Acari – lugar onde o Fórum do Município tomou o seu nome – já na altura dos seus 92 anos, proferiu essas palavras imorredouras: “Como seu filho, quero muito a esta boa terra, cuja cidade, sem deixar de ser risonha para quem chega, no dizer do cronista, se ostenta como uma estrela nova no velho engaste azul do firmamento, ela que é, no conceito geral, a cidade mais limpa do Brasil. Foi aqui, na minha meninice, que tive curral de vacas de osso para brincar e bons cavalos de macambira para esquipar. Foi aqui que, naquele tempo, nas procissões da Igreja, vez por outra, simbolizava eu o Anjo da Guarda de determinado andor, uniformizado de branco, calças curtas e meias compridas, com uma larga faixa de fita azul a tiracolo.”

 

Honrou a magistratura, o que foi confirmado até pelo grande e imortal Seabra Fagundes, em carta de 28 de janeiro de 1952 (que consta no livro citado acima): “Sei que era uma justa aspiração sua descansar das fadigas da vida intelectual, mas não posso deixar de lamentar que o nosso Tribunal se prive de um juiz de tanto senso de justiça e de tão grande inflexibilidade no cumprimento do dever. Sabe que não falo assim por lisonja, quer porque me conhece, quer porque esse sendo um juízo comum no nosso Estado, a seu respeito, não faço mais do que pensar como todos.”

 

Esse magistrado de fibra longa viveu por cem anos, foi feliz com o que realizou e com a esposa e todos os demais da família, que o admiravam profundamente, sempre confraternizando e palestrando em torno da sua figura de líder familiar simples, sem jactâncias, amado como devia e que impunha profundo respeito. E o Rio Grande do Norte também lhe deve respeito e urgente resgate histórico, como personalidade invulgar que foi.


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