Arthur Dutra

29/04/2020 10h10
 
Quando liberdade, verdade e justiça viram protagonistas
 
 
Em meio à avalanche de notícias desses dias, guardo sempre um tempo para assistir a bons filmes. Antigos e novos, não importa. O cinema voltou a figurar no meu, digamos, cardápio. E um dos filmes que me deu sugestões para boas reflexões foi “J´accuse – O Oficial e o Espião” (2019), dirigido por Roman Polanski. Já assisti duas vezes em dois dias, devo confessar. O filme trata com grande dose de realidade do famoso “Caso Dreyfus”, Alfred Dreyfus, o capitão do Exército francês acusado e condenado injustamente por traição. Há na história diversos elementos como o antissemitismo, já que Dreyfus era judeu; a manipulação da opinião pública que leva ao delírio de uma multidão violenta; violações às garantias processuais ao argumento das “razões de Estado”; e a coragem de vários homens que denunciaram injustiças.  
 
Alfred Dreyfus, judeu, capitão do exército francês, tinha uma vida impecável. Porém, foi acusado de traição contra a República Francesa por ter supostamente passado informações militares para potencias estrangeiras. Réu de um processo secreto, Dreyfus foi condenado em 1895 e humilhado perante uma opinião pública francesa que queria para ele a pena de morte. Expulso com desonra do Exército numa cerimônia ultrajante, Dreyfus foi enviado para cumprir pena de prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, o pior dos cárceres franceses.
 
Nesse momento, um ilustre brasileiro tomou parte nessa história: Rui Barbosa, que estava então exilado em Londres em razão das turbulências políticas de um Brasil que há pouco tempo abraçara a República. Dois dias depois da infamante cerimônia pública de degradação de Dreyfus no pátio da Academia Militar francesa, Rui Barbosa escreveu uma carta endereçada ao Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, para falar aos brasileiros sobre esse acontecimento dramático. Rui faz dois questionamentos principais: a desproporcionalidade da pena imposta a Dreyfus e a violência das multidões que queriam ainda mais. Cito aqui um trecho célebre que consta justamente dessa missiva: “Pela minha parte, não conheço excessos mais odiosos do que essas orgias públicas da massa irresponsável. Nada seria menos estimável, neste mundo, que a democracia, se a democracia fosse isto”. 
 
Noutro trecho, diz a Águia de Haia: “Nem a invocação da Pátria imprime a tais desvios fisionomia menos antipática. Mal honram a Pátria as contorções de um patriotismo histérico, que vive a se superexcitar com a obsessão de traições, que julga de oitiva, fulmina por palpites, e instiga os magistrados a prevaricar, antepondo a popularidade à justiça”. As palavras de Rui Barbosa, conhecidas por sua força, chegaram à família Dreyfus, tanto que o próprio capitão deixou registrado em suas memórias que foi de Rui Barbosa a voz que primeiro se levantou publicamente em sua defesa fora da França. E o tempo lhe deu razão.
 
Mesmo após o envio de Dreyfus para cumprir sua pena em outro continente, a inquietação permaneceu na pátria francesa. O filme conta justamente os fatos que se seguiram após a condenação de Dreyfus, que culminaram na descoberta do verdadeiro traidor e na redenção de Dreyfus, graças ao trabalho meticuloso – e corajoso – do Coronel Picquart, protagonista do filme. Além dele, há um outro personagem marcante nessa história: Émile Zola. 
 
Zola, já naquela época um famoso escritor, abraçou a causa da inocência do Capitão Dreyfus e fez publicar um dos mais veementes manifestos contra a injustiça de todos os tempos. É o “J´accuse!” (Eu acuso!), que saiu na capa da edição do jornal francês L´Aurore do dia 13 de janeiro de 1898. O libelo estava endereçado a Félix Faure, Presidente da República francesa, e denunciava a fraude cometida contra um inocente Alfred Dreyfus, além de nominar todos os responsáveis por sua consumação, inclusive altos oficiais do Exército francês. O texto é incisivo e forte, além de histórico, e traz trechos incandescentes como este: “É um crime confundir a opinião pública, utilizar para a sentença fatal essa opinião pública que foi corrompida até o delírio. É um crime envenenar os pequenos e humildes, exasperar as paixões de reação e de intolerância, abrigando-se atrás de um odioso anti-semitismo, de que a grande França liberal dos direitos do homem sucumbirá, se não for curada. É um crime explorar o patriotismo para as obras de ódio”. 
 
Por ter publicado esta carta, Zola foi violentamente atacado, enxovalhado pela sociedade francesa, que queimou edições do jornal em praça pública, e chamado de traidor. Também foi processado e condenado, mas não cumpriu a pena pois saiu para o exílio. Morreu misteriosamente poucos anos depois.
 
Recomendo, portanto, o filme “O Oficial e o Espião”, de Roman Polanski, a carta de Rui Barbosa sobre o processo do Capitão Dreyfus e o manifesto “Eu acuso!”, de Émile Zola. Um filme e documentos extraordinários, que contam uma história cheia de heróis e vilões, mas onde a justiça, a verdade e a liberdade são protagonistas maiores do que os próprios personagens envolvidos, e que nos evocam lições universais.
 

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