Eva Potiguara

12/06/2024 16h00

Uma Expedição Decolonial em Portugal

Quando eu soube que o meu novo livro “Herdeiros de Jurema”, Romance de Literatura Indígena, seria lançado na 94a na Feira de Lisboa em junho, fiquei apreensiva.  Não imaginava lançar uma obra que trata dos povos originários do RN  e da Paraíba, justamente na capital dos portugueses, de onde vieram os invasores da Terra Pindorama chamada Brasil.

A referida obra recebeu o Prêmio “Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus” do Ministério da Cultura em 2023, trata da voz de resistência dos Potiguara pela proteção das terras tradicionais, contra o domínio colonial social e político dos coronéis da cana de açúcar no início do século XIX.

Por outro lado, senti que poderia ser uma oportunidade de apresentar uma prosa decolonial, na perspectiva da mulher indígena Potiguara, uma narrativa inversa daquilo que se tornou notório saber absoluto na Europa.

Não tinha nenhum interesse meu em viajar a passeio. Eu realmente decidi vir na missão de ocupar o lugar de voz em memória dos meus ancestrais vítimas da colonização e honrar especialmente o meu Povo Jacu Potiguara.  A pergunta que me inquietava: -Como expor sobre as memórias e crimes da invasão, as suas consequências que ainda hoje afetam a desigualdade social dos povos originários e a política de demarcação das terras indígenas, na terra natal dos invasores?

Quando chegamos no Parque Eduardo VII, local da Feira do Livro de Lisboa, me deparei com o famoso monumento ao Marquês de Pombal, erguido no centro da capital portuguesa.  Já haviam me falado desta estátua monumental ao lado da praça literária.  Eu já tinha informado aos amigos que me acompanhavam, a escritora gaúcha Michelle C. Buss e o cineasta gaúcho Pedro Frizzo, que faria um manifesto de repúdio frente a imagem deste racista colonial, responsável pelo processo de etnocídio das culturas tradicionais dos povos originários do Brasil. Lembrando que etnocídio, refere-se a morte da identidade e étnica do sujeito.

Dessa forma, iniciei minha chegada à Lisboa, ecoando brados contra a Lei de Pombal de 1777, que proibia a prática das línguas nativas dos povos originários, além da preservação das suas culturas tradicionais, sociais e espirituais de cada nação indígena.  As pessoas me olhavam confusas, outras pareciam entender a minha ação e faziam gestos com a cabeça afirmando concordar com a minha postura e palavras de protesto.

Quando finalmente chegamos na Feira, o calor da primavera em Lisboa estava insuportável. Resolvi ficar debaixo de uma árvore do parque e meditar naquele momento, enquanto meus amigos seguiram para conhecer o evento.

Observei dali do alto da relva verde, os transeuntes visitantes de todas as idades, uma diversidade de pessoas, cuja maioria era adulta, ou idosa, carregando livros, ou simplesmente curiosa entre os estandes.  Os salões cheios para as palestras e lançamentos literários, as filas para as “assinaturas”, ou seja, para os autógrafos, eram muitas durante todos os dias.

Realmente, a ideia de que literatura e livro são levados à sério ficou evidente, incluindo de outros idiomas da Europa e das Américas. O que não me pareceu um investimento, foi a Literatura indígena e de outras minorias. Algumas pessoas se admiravam quando eu me apresentava como escritora. Não esperavam ver uma poeta, ou romancista indígena, ainda mais na Feira de Lisboa.

Às vezes algumas crianças que passavam apontavam: -olha uma “índia”! Os pais pediam que ficassem em silêncio, porém outros vinham conversar comigo e fazer perguntas como: -você é do Amazonas? -Você é de verdade, ou está fazendo marketing de alguma empresa da feira? Foram muitas vezes que tive que responder com calma e prudência, interrogações como estas.

No dia seguinte, eu e os meus recém amigos gaúchos, fomos à Belém, bairro bastante popular pelo delicioso “pastel de belém”. Antes de saborearmos esta deliciosa iguaria tradicional, fomos à praça ao lado do Rio Tejo, ponto histórico secular das grandes navegações portuguesas, onde estava o monumento consagrado aos navegadores do século XVI. Muitos turistas de vários países fotografavam e filmavam a estupenda obra que expressava o heroísmo e o desbravamento de Vasco da Gama, do Pedro Álvares Cabral, dos jesuítas e da heroica tripulação. 

Não pude conter a minha indignação, peguei meu maracá da bolsa e subi num bloco de mármore frente ao majestoso monumento e comecei a gritar: -O Brasil não foi descoberto! O Brasil foi invadido! Nossos povos originários da Terra Pindorama chamada Brasil, já estavam lá e viviam há mais de 6 mil anos antes do branco chegar. Parem de nos apagar e de matar a nossa existência! Eu sou Eva Potiguara, represento meu povo do Rio Grande do Norte e da Paraíba, que tiveram contato primeiro com os portugueses. Não houve conquista, houve usurpação de nossas terras, crimes contra a humanidade dos corpos/territórios dos adultos, dos idosos e das crianças dos mil povos que viviam em Pindorama no século XVI. 

Não poderei contar mais detalhes deste episódio, pois me estenderia muito tentando contar com minuciosidade. Acrescento, que enquanto eu fazia esta manifestação, muitas pessoas curiosas pararam para olhar, algumas filmaram, outras riram, outras viravam o rosto passando de lado, fingindo que nada estivesse acontecendo. A minha voz era engolida pelo forte barulho do vento que vinha das margens do rio, porém não esmoreci e aguardava a ventania passar para soltar mais palavras nos intervalos.

 Após este manifesto, eu e a escritora gaúcha Michelle, fomos nos encontrar com o nosso editor Nuno Gomes na famosa pastelaria de Belém. Foi um momento literalmente delicioso, pois nos deleitamos com os doces tradicionais da região, tendo o primeiro contato com a nossa obra no formato físico. Foi um regozijo restaurador após o episódio intenso da manifestação de repúdio que vivenciei.

  A partir do dia seguinte, eu, outras escritoras e escritores da Editora Exclamação, tivemos uma agenda de atividades focadas nos lançamentos de nossos livros, sessões de autógrafos, saraus literários e musicais, plenos de debates enriquecedores e de um repertório de músicas belíssimas da Michelle Buss e sua banda.

 Ressalto a importância que foi estar nos seminários “MULHERES, LITERATURA, NATUREZA”, na Biblioteca Palácio Galveias de Lisboa e na Universidade do Porto, eventos promovidos pela BUSINESS as NATURE e a Editora Exclamação, em comemorações do “Dia Mundial do Ambiente” e ao movimento “Mulheres pelo Clima, dos Países de Língua Portuguesa para o Mundo”. Estes encontros foram de imersão intercultural, em que tive a oportunidade de expor o papel fundamental das mulheres indígenas na memória de seus povos originários e na luta de mais de quatro séculos pela proteção da Mãe Terra. 

Nas mesas de debates sobre diversos temas, desde a literatura à luta contra a destruição ambiental e proteção das minorias, pude destacar o Mulherio das Letras Indígenas, uma organização não governamental, sem fins lucrativos, que reúne mulheres biomas de nossa Terra Pindorama.  Apresentei a mensagem poética decolonial e ancestral, enfatizei os 305 povos indígenas que ainda vivem em resistência pela biodiversidade de seus territórios tradicionais e da manutenção de suas culturas milenares.   

Nas rodas de debates percebi a ignorância a respeito dos povos indígenas do Brasil, por se tratar de um tema pouco conhecido e bastante constituído de estereótipos racistas e machistas. Senti o quanto é fundamental o investimento da literatura indígena nas terras portuguesas e como foi assertivo o lançamento do meu primeiro romance decolonial neste contexto. Senti que esta missão ainda tem muito chão pela frente.

Nessa “expedição exploratória” em Portugal, a obra “Herdeiros de Jurema” vem tendo uma boa receptividade e críticas favoráveis a sua inserção nos contextos escolares e não escolares.  Com o esforço da equipe da Editora Exclamação a obra tem possibilidades de ser incluída nas diversas instâncias sociais.  Sou profundamente grata ao meu editor Nuno Gomes, por mediar esse processo de semeadura de frutos e raízes dos meus ancestrais, mortos e oprimidos no enfrentamento das invasões e das migrações forçadas.

Que a visibilidade indígena se propague em Portugal, por meio das leituras decoloniais de retratação histórica/social aos direitos humanos e ancestrais.  Afinal, estamos no mesmo útero da Abya Yala explorada pelo consumo desenfreado.  É preciso chegar com a literatura indígena nas terras dos europeus e fomentar a proteção dos biomas no combate da crise climática. Consideramos emergente a luta de toda a sociedade planetária no enfrentamento de mais de cinco séculos de destruição ambiental.

Sobre a autora:

Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes Visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil e em Portugal. Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus  2023 do MINC, na categoria Romance.


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