Eva Potiguara

Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil

28/05/2024 08h26
 
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OS JOGOS DO FIM DO MUNDO 
 
Antes de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS), já declarava vício em jogos como um transtorno de saúde mental. Um estudo do Instituto Nacional para a Mídia e a Família, com sede em Minneapolis, nos Estados Unidos, indicou que os games podem viciar as crianças e contribuir  nos seus níveis de depressão e ansiedade e, evidentemente, no declínio do desempenho escolar. 
 
Neste período de licença médica, tenho tido a oportunidade de observar coisas que antes nem sequer imaginaria dar atenção. Me refiro aos jogos eletrônicos em  smartphones, atrativos que não são apenas para as crianças e adolescentes. 
 
Confesso que nunca tive hábito, ou interesse  de utilizar jogo algum. Sempre defendi as práticas lúdicas tradicionais de brincar e manifestei a minha preocupação de serem substitutas pelos jogos e brincadeiras virtuais, em virtude  de seus  impactos negativos no desenvolvimento físico e emocional das crianças e jovens. Uma série de estudos da Universidade Estadual da Califórnia descobriu, a partir de exames de ressonância magnética, que videogames “viciantes” podem ter um efeito similar no cérebro como drogas e álcool.
 
Porém, hoje é quase impossível alguém não ter contato com os jogos espalhados em massa nas redes sociais. Antes eram vistos  mais em aplicativos específicos, mas aos  poucos predominaram todas as formas de interação no uso da Internet. E o meu contato se deu quando eu fui ler uma história e fiquei surpreendida com o bloqueio do arquivo.  Surgiu uma “tarefa” me condicionando a assistir “anúncios”, para desbloquear a leitura. Logo percebi a intenção do dispositivo eletrônico: me manter refém de seu lixo visual, em troca de me permitir acesso a leitura da obra. A segunda opção, era pagar por cada episódio, cuja soma de cada capítulo saía mais caro que de dez livros de romance comprados na Amazon, ou noutro site de livros físicos, ou em ebook. 
 
Evidente que desisti de seguir lendo a história e não apenas por não concordar com o tipo de extorsão econômica, mas, sobretudo, pelo conteúdo alienador desses jogos cuja maioria remete a escravizar corpo/mente a serviço da objetivação do sujeito. O que Marx defendia como “perda do espírito de si próprio”.
 
Percebi que além de incentivar o estilo de vida sedentário e  fomentar a violência, os games e jogos eletrônicos atuais, geram problemas de ordem perceptiva e formativa que podem passar despercebidos. Destaco o intenso apelo ao consumo de bens materiais, acionado por uma repetição de "recompensas" em moedas virtuais, ou até em dinheiro, que manipulam de forma agressiva até sujeitos de altos níveis de instrução. 
        
Dos jogos que pude observar, vou destacar apenas dois que, em resumo, representam o lixo audiovisual que está amplamente acessível às crianças e adultos em geral.  Um deles, o  FROZEN CITY, é um jogo de simulação da construção de cidades, onde a extração de madeira é usada em alta escala para a produção das casas. O cenário é de neve e muito frio, em que o jogador precisa ter dinheiro para atingir níveis máximos nos resultados de produção. Como tudo gira entre dinheiro e extração de recursos naturais, o jogador nem sempre percebe que terá que destruir centenas de florestas, como a única forma de salvar-se.  
 
No jogo  Rich inc. real idle hero life, simula a vida de um rapaz pobre que tem muitos sonhos e para isso, ele precisa vencer algumas etapas para ficar rico e poderoso socialmente. O processo de interação do jogo banaliza valores básicos da vida afetiva em família, com os animais e consigo mesmo. O protagonista da história deve tomar decisões com base no valor material das coisas e na aparência física das mulheres, assim como na raça de um animal de estimação. 
Ailton Krenak na sua obra “A vida não é útil",  afirma que as ferramentas tecnológicas possuem uma espécie de ilusão imbuída nelas, escondem o que há para além da superfície e faz com que os sujeitos se enganem sobre o que é importante. Ele compara essas tecnologias digitais com brinquedos que saem caros, não pelo valor financeiro, embora muitos sejam de alto custo. O preço é a “lógica” capitalista em que são fundados que estimulam o consumismo, forjam necessidade, e as pessoas aderem a essas “novas modas", sem que haja reflexão dos danos causados ao planeta Terra.
 
“Os jogos do fim do mundo”, é uma denominação esboçada por mim, que parece brincadeira, mas na verdade, não é uma ironia. É um alerta aos pais, aos educadores e aos internautas em geral, que atentem para a ideologia neoliberal e devastadora da natureza em que esses games de entretenimento são projetados. A noção do consumo insaciável, a banalização das relações humanas, a ilusão de que os recursos naturais são infinitos e estão ao dispor de todos os que podem comprar e pagar, é um processo nocivo em favor da insustentabilidade à vida.  
 
A mesma lógica que defendia a abertura do comércio em plena pandemia, quando não havia vacinação da sociedade, é a mesma que orienta o abuso do consumo dos recursos naturais e das tecnologias de entretenimento que condicionam os jogadores a meros zumbis dopados pela ilusão do lucro. 
 
 A vulnerabilidade do ser humano fica evidente a cada tragédia ambiental que surge com a crise climática em expansão, pois indica que essa sociedade fundada no lucro está predestinada à falência existencial. Não há como interferir na Terra e acreditar que nada acontecerá, pois a natureza é uma estrutura ecossistêmica, é uma entidade viva, composta por sistemas vivos interdependentes.  Isso significa que as mudanças acontecem de maneira coletiva, pois os indivíduos vivem em conjunto e atuam sobre o mundo em conjunto.  
 
Diante disso, novamente afirmamos que é preciso rever bases estruturantes, ideias coloniais consolidadas, formas de viver estabelecidas, em que o lucro esteja acima da vida. É urgente mudar o jogo, mudar as regras em função da natureza como parte de nós, isso implica ouvir a terra, sentir suas dores e lamentos e recriar uma relação de bem viver com o planeta. 
 
Por isso, é inegável que o futuro é ancestral. É urgente a retomada de religação com a Terra, enquanto entidade orgânica, matriarcal e sagrada. 
 
Eva Potiguara  
28 de maio de 2024
 
Sobre a autora: 
   
Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes Visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil e em Portugal. Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus  2023 do MINC, na categoria Romance.        
 

 


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